quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A cor dos meus olhos


Prestes a fazer dezoito anos, dei início à coleta de documentos necessários para tirar a carteira de motorista. Tive que atualizar minha identidade, solicitando a segunda via do RG. A primeira, tirei quando era criança — estava loiro na foto e não tinha um nariz arrebatador.

O primeiro passo se resumia em ir a um despachante e preencher o formulário de requerimento. Fui. Ou melhor, fomos: eu, meu pai à esquerda, minha mãe à direita e minha irmã mais velha atrás. Sem fila, me dirigi ao balcão e coloquei a certidão de nascimento na frente da mocinha.

No computador, ela transcrevia todas as informações sobre mim. Não encontrando uma que era exigida, perguntou:

— Qual a cor dos seus olhos?

— Castanhos.

Respondi tranquilamente, sem esperar os comentários nervosos que viriam a seguir.

— Está louco? Seus olhos são marrons.

— Nem castanhos nem marrons. Seus olhos são cor de mel.

— Falando em cor e em olhos, vocês só podem estar daltônicos. É óbvio que seus olhos são nogueirados.

Fiquei mudo, olhando estático para a mocinha.

— Não precisa arregalar os olhos que eu não posso opinar. Mas, se eu pudesse, concordaria com seu pai. Eles parecem marrons.

Minha irmã se revoltou com o comentário e, puxando-me pelo braço, me arrastou para fora do estabelecimento e parou um casal que passava pela rua. Pediu para que eles dessem opinião sobre a cor.

— São castanhos!

— Lógico que não! Eles são nogueirados.

— Pois, agora que você está falando, eles parecem realmente nogueirados.
Até aquele dia, eu sequer tinha ouvido alguém dizer que fulano ou beltrano tinha os olhos nogueirados. O adjetivo foi uma novidade para mim. Já que a cor dos meus olhos era tão indefinida, talvez devessem ser dessa cor rara mesmo.

Voltei decidido que meus olhos eram nogueirados. No entanto, antes que eu pudesse assumir a nogueirês de meus olhos, uma estagiária que estava digitalizando uma pilha de papéis, me flertou:

— Você é tão bonitinho com esses seus olhos cor de mel.

Castanhos, marrons, nogueirados e cor de mel. Parecia proposital essa discórdia, apenas para que eu não pudesse tirar novos documentos e, consequentemente, não pudesse ficar apto para dirigir. Talvez me considerassem um terror no volante antes mesmo de eu me sentar na frente de um.

— Por que você não faz uma enquete?

Inicialmente, pensei que a balconista estivesse sendo irônica, mas vi que a ideia era séria e podia dar certo. Aproveitei todos os meus perfis em sites de relacionamento.

Não deu muito certo porque a maioria optou pela alternativa Outros. Tive que contratar o IBOPE e o Datafolha para realizarem pesquisas que determinassem a cor, de fato. Os resultados, todavia, foram distintos. O de um instituto acusou marrom, enquanto o do outro registrou cor de mel.

Já estava entrando em desespero e a certeza da dúvida sobre a minha cor ocular começou a se expandir. Entraram em contato comigo. Era da Justiça Eleitoral, oferecendo urnas eletrônicas para que eu pudesse fazer uma votação clara e aberta a todos os públicos.

O domingo seguinte virou feriado. O país se uniu com o dever de votar e eleger a verdadeira cor dos meus olhos. Muita gente não fazia ideia de quem eu era, mesmo assim foi obrigado a ir às urnas e escolher uma opção.

No fim do dia, saiu o resultado. No dia seguinte, logo pela manhã, voltei ao despachante. A mocinha estava lá, pronta para terminar de preencher o formulário. Ela repetiu a pergunta:

— Cor dos olhos?

E eu, cheio de mim e ciente da verdade própria, respondi em alto e em bom tom:

— Castanhos.

— Castanho claro ou escuro?

sábado, 11 de dezembro de 2010

πercings


Tinha 15 anos. Por mais que aparentasse ter 17 (ou mais), a cédula de identidade e a certidão de nascimento provavam que ele ainda iniciava a segunda parte das cinco que compunham sua vida. Embora na flor da idade, não fumava, não ingeria bebidas alcoólicas, não usava drogas, não gostava de tatuagem... Apenas morria de vontade de fazer um piercing.

Ele via as outras pessoas usando, achava bonito e queria igual. O maior problema, no entanto, era encontrar o lugar mais indicado para perfurar. Por algum motivo, pensava em fazer um piercing na ponte do nariz, a formação óssea acima da cavidade nasal, parte que fica entre os olhos. Mas, por algum outro motivo, sabia que não combinaria consigo — o formato do rosto, o cabelo longo, a cor branco-pálido... Algo em si provocaria desarmonia com uma argolinha na ponte.

Parou e começou a analisar parte por parte do corpo: sobrancelha, orelha e umbigo eram lugares muito comuns; clavícula, calcanhar e atrás do joelho eram muito incomuns. Chegou a pensar em colocar nos órgãos genitais, mas que graça teria? Quem iria ver? Nem namorada ele tinha.

Essa situação-problema precisava ser resolvida, e ele teve a genial ideia de usar a matemática, a matéria que mais gostava, para ajudá-lo. Esboçou um gráfico com a própria silhueta, calculou perímetro e área, achou os ângulos, raios e diâmetros possíveis; somou, subtraiu, dividiu; multiplicou... Fez contas que muitas pessoas nem sabem que existem. O resultado, portanto, saiu com 100% de precisão: o ideal seria fazer um piercing na franja.

Sem pensar duas vezes — o cérebro já havia se cansado de pensar —, juntou as economias que guardava num pote de biscoitos e foi para o studio de piercing confiável mais próximo de sua casa.

Desde então, há quem diga que ele usa presilhas; ele garante que são piercings!

sábado, 4 de dezembro de 2010

Beleza em Caps Lock


Acordar não é simplesmente abrir os olhos após algumas horas inconsciente. Acordar é estimular involuntariamente as pálpebras para que elas se ergam e revelem a claridade às delicadas pupilas. Acordar é um esforço tão grande que cansa minha beleza.

Falando assim, parece até que sou narcisista — ou como chamam hoje em dia, metrossexual. Não sou. Não sou, mas penso que gostaria de ser, caso fosse mulher.

Para começar, investiria em maquiagem. Batom, blush, rouge e quaisquer outros tapa-imperfeições que dão nomes a bandas musicais femininas. De fato, enriqueceria os donos das fábricas de cosméticos, mas também tornaria rica a minha pele com tanta beleza industrializada.

O segundo passo seria fazer uma dieta. Dieta da Lua, dieta da água, dieta do carboidrato, dieta da diarreia... Tentaria de tudo para me tornar sósia da Olívia Palito e imitar a tecnologia: as televisões que afinam, os monitores que ficam mais leves e a conta bancária que fica cada vez mais lisa.

Voltaria, então, ao salão de beleza, o mesmo que rebocara meu rosto há dois parágrafos. Desta vez, porém, seria para deixar meu cabelo como o de jornalista da Rede Globo. Creme alisante, formol, esperma de pato... Para que meus cachinhos sumissem, permitiria a visita das mais inusitadas substâncias — e até abdicaria do posto de musa de cabelos de caracóis dos Irmãos Carlos.

Providenciaria, a seguir, minha cirurgia plástica para me transformar em mulher-fruta. Tiraria a roupa na frente do médico para que ele, com uma caneta co-piloto, fizesse as marcações necessárias. "Marque-me e Bismarck-me, doutor." O mínimo que ele poderia fazer siliconizar meus seios e nádegas, mas de uma forma que me deixasse aumentá-los posteriormente e ir aumentando e aumentando até que eles explodissem e eu corresse risco de morte. Se eu morresse, morreria gostosa.

Porém não sou mulher e, infelizmente, não tenho paciência para zelar de mim próprio sendo homem. Não tenho disposição para frequentar academias e participar de competições como "a batata da perna mais cheia de veias", nem de ficar sem camisa em frente ao espelho, tirando fotografias, na tentativa de estampar o livro dos recordes como "o abdome mais definido do mundo".

Acordar é um ato definitivamente desgastador. Infelizmente, sou tolo e não consigo cerrar os olhos; prefiro me cansar e acordar para a vida.

sábado, 27 de novembro de 2010

Cronicolândia

As lândias — do inglês land — são mais conhecidas por estarem presentes em nomes como Neverland, Robot Land, Play Land, Conny Land.

É curioso como os países têm nome de parques de diversões: Groenlândia, Tailândia, Suazilândia, Nova Zelândia, Disneylândia. Sim, porque a Disneylândia ficou tão famosa e independente que já elegeu o Mickey Mouse como seu presidente.

Também é notável como os estados mais famosos do exterior sustentam essa mesma característica: Maryland, Queensland, Auckland.

Os brasileiros, certamente, não puderam ficar de fora. Embora não tenham conseguido acrescentar o sufixo lândia no nome do país, criaram cidades e bairros lândias com uma criatividade fora do comum.

O exemplo mais comum é a Brasilândia. Brasilândia vila, Brasilândia distrito, Brasilândia município... Só faltou alterarem para Brasilândia o nome da capital nacional.

Tem-se conhecimento também de lândias que ficaram no mínimo originais, aglomeradas ao nome do território. Açailândia seria a terra dos açaís? Recursolândia é onde a população vive entrando com recurso? Retirolândia é um lugar tão afastado como parece?

Quem pensa que para por aí está pensando errado. As lândias estão presentes nas cantoras de axé (Gilmelândia), em determinadas regiões (Cracolândia), nos discos de MPB (Viva a Brotolândia), nas revistas sobre estrelas de cinema (Cinelândia), nos programas de televisão (Zuzubalândia). Até em sites de jogos (Jogolândia) e nomes de empresas (Empregolândia).

Mas que fique claro: não existem parques de diversão apenas no nome; no Brasil, há também parques reais. Estes são chamados de PlayCenter, Hopi Hari, Beto Carrero World...

As lândias são estrangeirismos e só existem porque derivaram do inglês land. Agora, se já há tanto disso no Brasil, imagine na Inglândia!

sábado, 20 de novembro de 2010

Oscar Brasileiro

Se eu fosse um milionário ligado à imprensa, desenvolveria um projeto para premiar a melhor emissora de televisão brasileira. O troféu ficaria cravado em uma pedra e apenas a emissora realmente interessada em agradar os telespectadores teria capacidade de retirá-lo. Fico imaginando a disputa como se ela fosse acontecer hoje e tentando eleger a que deve ser considerada vencedora.

A primeira candidata, também número um na audiência, é notavelmente um globo, um círculo que não se desprende do conteúdo uma vez proposto. Culinária, desenho animado, jornal, novela, filme, culinária, desenho animado, jornal, novela, filme, culinária, desenho animado... Nada de criativo, nada de original, mas faz um clichê bem feito e atrai a maioria por isto: a qualidade no ruim.

A segunda candidata é um sistema blá-blá-blá de televisão. Diferente da primeira candidata, esta não tem início, meio ou fim. Os programas voam como vacas na visão distorcida de um bêbado. Também como vacas, que repetem suas atividades diariamente, a emissora exibe mais reprises do que programas inéditos. Com certeza é uma emissora que, se não ganhar o prêmio na primeira edição, não achará nada estranho tentar no próximo ano, tentar próximo ano, tentar no próximo ano.

A terceira candidata quis bater um recorde de inovação e acabou misturando um pouco das características da primeira com as da segunda candidata. Nessa, as vacas que se repetem giram em círculo e resultam num xérox — que a emissora insiste em garantir que foi autenticado em cartório e, por isso, é como se fosse original.

A quarta candidata investe em bandeirantes para explorar o ouro, sem perceber que já não há mais pedras preciosas nos lagos. O que é exibido tem uma perfeição indiscutível... para ter sido exibido há cinquenta anos. Os roteiros dessa emissora, provavelmente, sejam papiros ou livros de História que não contém nada de moderno e sedutor.

A quinta candidata é uma rede de tevê que cresce a cada dia, afinal é o povo que faz a televisão. A emissora defende que, para agradar o público, nada melhor do que deixar o público no ar. Sem jornalistas, apresentadores e demais profissionais realmente profissionais. A regra é: a voz do povo é a voz de Deus. Se é bonito e sabe contar piadas, que mal há em dirigir algo visualizado nacionalmente.

Há, também, as candidatas menores, que nem merecem o tempo dispensado para uma análise sobre elas.

Se eu fosse um milionário e tivesse condições de criar essa premiação, possivelmente, o prêmio ficaria preso por um bom tempo, já que ainda não existe uma TV Arthur, despreocupada com o dinheiro obtido através da propaganda e com uma programação de qualidade.

sábado, 13 de novembro de 2010

Relato de um Francês

As calças coloridas se tornaram moda entre os adolescentes; os cachorros de raças mescladas se tornaram moda entre as senhoras; o broche na gravata se tornou moda entre os executivos; a exportação se tornou moda na União Europeia. A Itália exportava vinho e azeite; Portugal exportava bacalhau; a Inglaterra exportava batatas fritas; a França exportava ciganos.

Oito mil ciganos — uns a mais ou a menos, a exatidão não importa nem para as estatísticas — tiveram suas moradias simpaticissimamente destruídas e foram amabilissimamente convidados a embarcar em um cruzeiro até a Romênia ou a Bulgária. Sem volta. Sem direito a recusa.

Desgostosos de tal evento, nos infiltramos clandestinamente em outro navio, eu e mais vinte, e seguimos com o medo na veia, mas a coragem na alma, orgulhando o sangue nômade e o espírito, ainda que decepcionado, francês. Representaríamos uma nova imigração francesa rumo ao mais extenso território sul-americano.

No Brasil, não houve preconceito com a nossa chegada. Ao contrário, parecendo se interessar pelo estrangeiro, os brasileiros vieram receber nossa trupe com buquê e champanhe. Depois nos levaram para tomar um café da manhã com baguete, croissant e petit gateau.

Éramos desconhecidos, mas o povo nos tratava como se fôssemos a Madonna fazendo uma turnê. As mulheres trocavam entre si os batons, os rimeis e até os sutiãs comprados na butique. As brasileiras se ofereciam para preparar um requintado suflê com chantili, desde que, em agradecimento, víssemos a sorte delas no tarô.

Na hora do almoço, tivemos até garçom, nos servindo o couvert: maionese e vinagrete. Depois se iniciou o bufê cheio de frufru, com coq au vin no início e mousse no final. Foi uma refeição livre de qualquer gafe.

Ainda no primeiro dia, um parceiro e eu, ambos solteiros, fomos a uma boate, na sessão da matinê, e conhecemos Biju, uma mademoiselle que usava muita maquilagem e desfilava, dançando balé, sobre uma passarela. Não preciso nem dizer que o dia terminou em um ménage à trois.

Conseguimos, em pouco tempo, um emprego como instrutor de esqui e, com dinheiro em mãos, nos sentimos verdadeiros czares. As mulheres quiseram ajudar, ocupando ofício de manicure e pedicure ou fazendo balaiagem e degradê nos cabelos alheios.

A Guiana Francesa que me perdoe, mas o Brasil se tornou oficialmente nossa segunda França. Importou pessoas estrangeiras; importou parte de nossas vidas; importou-se conosco. Posso não ser o ás da escrita, mas faço deste registro um dossiê.

sábado, 30 de outubro de 2010

Veneno do Bem


Mosquitos zunindo no vitral, pernilongos sobrevoando o cômodo, baratas correndo para lá e para cá, formigas encarrilhadas subindo a parede e uma professora de química desempregada dividindo seu humilde barraco com todos esses insetos asquerosos.

Cansada de ter que aturar essas pragas, ela juntou suas últimas economias e foi ao mercado, a fim de comprar algum produto que resolvesse seu problema. Ao entrar no setor de objetos de limpeza e demais acessórios domésticos, deparou-se com inúmeros inseticidas. Analisou todos e pegou aquele que era mais barato.

Ao chegar em casa, espirrou o líquido em todos os cantos. Os mosquitos tentavam atravessar o vidro da janela; os pernilongos voavam desorientados; as baratas giravam tontas; as formigas paravam de andar. Em pouco tempo todos os insetos estavam mortos.

Mortas também estavam todas as suas flores. E não era só isso: devido ao líquido do inseticida, as paredes estavam molhadas, os móveis haviam se manchado, as comidas tiveram que ser jogadas fora, e sua casa ficou com um fedor horripilante.

Diante de tal cena, ela teve uma ideia fenomenal: usar o conhecimento que tinha na área de química e desenvolver um inseticida diferente, um que não causasse tantos danos.

Voltou ao mercado, comprou várias marcas diferentes de inseticida no cheque pré-datado, estudou todas as fórmulas, fez do seu quarto um laboratório. Em algumas semanas, havia desenvolvido o primeiro inseticida com cheiro de morango.

Patenteou seu produto e, em seguida, escreveu cartas para as mais famosas empresas de inseticida. Dentro de poucos dias, seu celular sem créditos não parava de tocar. Todas as empresas haviam gostado da ideia e estavam a fim de patrocinar o lançamento do produto.

Os valores oferecidos foram altos... A última que ligou ofereceu mais de milhões. A professora aceitou e ficou rica. Sua invenção hoje vende mais do que água em dia de seca.

Se os insetos realmente vão embora após o uso do inseticida, isso ninguém pode responder; mas que a casa de quem o usa fica com cheiro de frutas frescas, isso é inevitavelmente garantido.

sábado, 23 de outubro de 2010

Descendo...


Entrei no elevador e o casal estava lá, um de cara virada com o outro, como se tivessem acabado de brigar raivosamente. Fui para a parede do fundo, não cumprimentei ninguém, contribuindo para manter o silêncio daquele recinto.

O elevador descia e os rostos franzidos não se moviam. Sabia que eles não viam a hora de sair daquele elevador para não terem mais que ficar próximos. A vontade deles, no entanto, foi interrompida — porque a energia foi interrompida.

Presos entre o primeiro andar e o térreo, a luz de emergência se acendeu, servindo de abertura para uma estranha discussão entre o casal.

— Você sabe que eu jamais o perdoarei pelo que fez, não é, Nei?

— Até agora não entendi por que é que você se magoou tanto, Cida.

— Você matou a Madama Guadalupe! Ela era minha personagem preferida. Você não tinha esse direito.

O autor decide tirar a vida de uma personagem e um casamento fica abalado por isso. Isso sim parece uma história de ficção.

— Nei — disse, apontando o dedo indicador para o nariz do marido. — Nei, você ainda vai se arrepender por esse assassinato.

— E você, Cida, vai se arrepender se continuar apontando esse dedo para mim.

— Ah, é? O que você pode fazer contra meu dedo?

O homem não demorou a agir. Abriu a boca o máximo que conseguiu e a levou em direção ao dedo, abocanhando-o com força. A mulher berrou mais por ódio que por dor. Deu a réplica: abocanhou a mão inteira do companheiro.

O homem aumentou o tamanho da mordida e pegou até o pulso. Ela, em contrapartida, ia engolindo o braço dele sucessivamente.

Ele mastigava o cotovelo dela, enquanto ela já mordiscava a clavícula dele. Era impressionante assistir à cena de um casal se devorando, sem se importar com quem estivesse ao redor.

Num súbito, a luz de emergência também queimou, deixando-nos em um escuro total. Não era mais possível ver a refeição exótica do casal, mas dava para ouvir os horrendos barulhos de dente batendo em osso e sangue se misturando com saliva.

Quando a energia voltou, as portas logo se abriram. Incrédulo com o ocorrido, fui o primeiro a sair do elevador, fingindo que não havia visto nada de anormal. Ninguém saiu depois de mim; ninguém ficou lá dentro.

sábado, 16 de outubro de 2010

2º Congresso de Educação de Alumínio


Há algo mais gostoso do que escrever sobre momentos em que a gente se sente bem, na companhia de pessoas que nos agradam e são responsáveis pelos sorrisos nos nossos rostos? Com certeza, não há. Por isso, a coluna desta semana é inteiramente dedicada ao 2º Congresso de Educação de Alumínio, ocorrido nos dias 13 e 14 de outubro.

Como estagiário do Departamento de Educação, atuando na E. M. Profª Isaura Krüger, me ofereci para participar do evento e minha inscrição foi gentilmente aceita. No Congresso, além de rever os professores que deram aula para mim na pré-escola, no fundamental e no médio, ainda conheci gente nova e que já deixou sua marca em minha vida.

Quanto às palestras e aos palestrantes, ficam os elogios! A primeira palestra ("Atores da Inclusão: formação e compromisso", da Profª Drª Maria Tereza Egler Mantoan), feita no dia 13, mostrou a realidade no método de ensino e na dificuldade em enturmar determinados alunos, mas sugeriu formas de como os professores devem ser criativos para contornar todas as dificuldades.

A segunda palestra ("Como formar a pessoa do futuro na escola do presente", do Prof. Cezar Braga Said), no dia 14, não só informou como também divertiu e atraiu a atenção de uma forma surpreendente. Com histórias de vida e metáforas que podem ser aplicadas ao dia a dia, ele foi muito aplaudido e cumprimentado.

A terceira palestra ("A Verdadeira Avaliação: Útil, Viável, Ética e Precisa", da Profª Drª Thereza Penna Firme) já começou causando risos e despertando o interesse, com comparações satíricas da idade da mulher com os continentes¹ e da idade do homem com os tipos de jornais². Foi longa, mas envolvente.

Infelizmente, saí às 15h e não assisti as outras duas palestras. Ficar até o final me impediria de escrever este artigo, de antecipar os trabalhos para a manhã seguinte e de terminar as atividades pendentes da faculdade — preciso dar atenção especial a esta, senão não haveria estágio e, consequentemente, não haveria este relato.

Por não ter ficado até o último minuto, corro o risco de não receber o certificado de participação, mas acredito que o conhecimento que adquiri nas horas que fiquei lá valem muito mais do que qualquer pedaço de papel.

Espero continuar sendo convidado para participar desses e de outros eventos que tanto iluminam a cidade de Alumínio.

¹ "Dos 15 aos 20 anos, a mulher é como a África: meio virgem, meio explorada. Dos 20 aos 30, é como a Ásia: cheia de mistérios. Dos 30 aos 40, como a América: eficiente e cooperadora. Dos 40 aos 50, como a Europa: meio cansada, mas ainda aproveitável. Depois dos 50, é como a Oceania: todo mundo sabe onde fica, mas ninguém se anima em ir até lá."

² "Dos 20 aos 30 anos, o homem é como jornal local: sai todo dia. Dos 30 aos 40, é como semanário: sai só nos fins de semana. Dos 40 aos 50, é como jornal mensal: uma vez por mês é olhe lá. Dos 50 os 60, é como jornal semestral: só nas férias de julho e no final do ano. Depois dos 60, então, se torna edição extraordinária!"

sábado, 9 de outubro de 2010

Concurso de Matemática


Um verdadeiro gênio da matemática, Alessandra podia ser considerada uma calculadora ambulante; era capaz de resolver em questão de segundos as mais complexas contas do mundo numérico.

O primeiro contato dela com os números foi logo na maternidade, quando tomou mamadeira pela primeiríssima vez. Seus olhinhos de cachorrinho com imensurável energia fixaram no indicador de medidas. Era possível que não se lembrasse, mas, nos primeiros minutos de vida, soube que estava bebendo 30 mililitros de leite.

Ao ficar maiorzinha, aprendeu, ainda na escola primária, a identificar os algarismos arábicos e distingui-los dos romanos. E, assim, ficou perdidamente apaixonada por ambos. Tanto o 1 como o I serviam para mostrar, entre seus gostos, em que lugar a matemática estava.

Em testes de aritmética, era a primeira a realizar todos os exercícios e entregar sua prova, para que o professor colocasse, logo de cara, a nota que nunca mudava: 10. Jamais fora avaliada com uma pontuação menor que dez; podia ser considerada a melhor aluna da cidade.

E foi graças a todo esse prestígio que, no final de sua adolescência, fora convocada a participar de um concurso nacional de matemática, representando o município em que vivia. Tranquila, ela foi de peito estufado e queixo erguido, crente que traria a medalha de ouro para casa.

Nem um pouco ansiosa, ela assistia aos que estavam em sua frente. E não conseguia acreditar como os competidores erravam coisas tão banais, problemas absurdamente fáceis. Isso lhe dava ainda mais confiança de que ocuparia o lugar mais alto do podium na entrega dos prêmios.

Bastou ouvir um dos jurados chamar por seu nome que ela levantou-se rapidamente e dirigiu-se até o centro do palco. A conta que precisaria resolver foi enfim sorteada, retirada de uma urna imensa, com diversos exercícios matemáticos.

Antes de lhe apresentar o cálculo que teria que solucionar mentalmente, o júri se entreolhou e começou a cochichar entre si. Ninguém da bancada cria que tal operação fora escolhida para a lista de exercícios do tão importante concurso, que abrangia todo o país.

O suspense causado pelos realizadores da competição não preocupou Alessandra. Ela tinha certeza que estava altamente capacitada para responder, na lata, o que lhe perguntassem.

— 3x3... — disse o jurado da ponta esquerda, após o regulamento ter sido discutido pela quarta vez e chegarem a conclusão de que, mesmo sendo injusto para com os outros competidores, a conta precisava ser feita.

Sorrindo, ela ergueu a cabeça e preparou-se para responder. Entretanto foi obrigada a fazer uma pausa. O silêncio inesperado e a cara assustada de Alessandra foram responsáveis pelo burburinho entre os presentes. Parecia inacreditável, mas ela não sabia a resposta.

Por pensar ter um cérebro cem por cento ativo, Alessandra nunca estudou tabuada; nunca leu um livro; nunca contou nos dedos; nunca parou para escrever os números naturais.

Jamais colocou data no cabeçalho das páginas; jamais realizou uma chamada telefônica ou usou uma calculadora; jamais mudou o canal para o “Channel Nine”; jamais se esbarrou com uma expressão numérica onde aparecesse o nove.

Todos os dias, ouvia música das oito e meia às dez da noite. Durante o período da manhã, sempre esteve na escola, sendo assim, não teria motivos para consultar o relógio. Quando fez nove anos, para economizar dinheiro, sua mãe colocou sobre o bolo a mesma vela do ano anterior, a de número 8. Por causa desses motivos — e somente desses — a moça desconhecia o carismático número 9.

O tempo de responder à pergunta esgotou-se. A jovem mulher permanecia atônica. Uma ambulância ali presente a levou ao hospital, onde foi diagnosticada a depressão.

Um suicídio fora cometido. E por culpa do médico, que, sem saber o que se passava, o motivo da melancolia, receitou que a coitada tomasse um comprimido antidepressivo... a cada nove horas!

sábado, 2 de outubro de 2010

Cabelos Afiados


Ao terminar de pentear os cabelos, notou que um fio rebelde insistia em ficar espetado. Conhecedora das mais diversas técnicas de beleza, ela o enrolou no dedo indicador e, com um puxão, o arrancou.

Sentiu uma dor aguda, mas não foi na cabeça. Olhou para o dedo a tempo de ver a gota de sangue escorrer e cair na pia branca, ao lado do fio recém-tirado. Chegou a pensar que um piolho faminto a tinha mordido, mas isso não seria possível: nunca tivera uma lêndea sequer.

Temendo que estivesse com algum problema de pele que fazia sua derme ficar hipersensível, correu ao dermatologista. O doutor fez uma análise nas mãos da moça e não notou nada errado. Decidiu verificar o couro cabeludo, qual não foi a surpresa quando também se feriu com os cabelos da paciente.

A mulher já tinha tirado as próprias conclusões: fora amaldiçoada! Assim como a Medusa tinha serpentes no lugar dos cabelos, os dela haviam se transformado em lâminas. Decidiu, portanto, que ninguém mais os tocaria — para evitar machucados.

No caminho de volta do médico, notou um rapaz que lhe pareceu um tanto simpático. Querendo jogar-lhe um charme, fez com que os cabelos balançassem no sentido do vento. Infelizmente, alguns fios se encostaram ao rosto, resultando em feios arranhões faciais.

Desembestou ao salão de beleza mais próximo: iria raspar tudo! Estava tão firme na decisão que não se importou com o fato de a cabeleireira, não conseguindo cortar com a tesoura, ter sido obrigada a atender ao pedido com uma motosserra.

Prestes a dormir, olhava-se no espelho e se via careca, a cuca literalmente lisinha. A única lembrança que tinha dos cabelos eram as marcas na bochecha.

Angustiada porque não precisaria mais usar os seus cosméticos de beleza capilar, jogou-os no lixo sem pensar duas vezes.

Foi-se o creme de jaborandi; foi-se o condicionador de babosa; foi-se o xampu de cerol.

sábado, 25 de setembro de 2010

Maçãs Cabeludas


Acordou sentindo-se absurdamente grávido. Os olhos arregalados tentavam, sem sucesso, levantar o corpo, e o paladar mostrava o desejo insólito de comer maçã em plenas três da manhã. Ainda era madrugada, mas o estômago roncava como se já passasse do meio-dia.

Ansioso e cobiçoso de um pedaço de maçã bem suculento, correu à cozinha e acendeu rapidamente a lâmpada que iluminou a amada fruteira e as almejadas maçãs. Gala, argentina, fuji... O tipo da maçã não importava; o essencial era que ele devorasse uma.

Escolheu a mais vermelha e brilhante. Apenas pela casca, ele pôde calcular quão doce era seu sabor. Com água na boca — na verdade, saliva na boca —, ele decidiu não abocanhá-la logo de cara, mas parti-la ao meio e apreciá-la lentamente. Qual foi uma grande surpresa encontrar um fio de cabelo na polpa.

Olhou aquilo, achando muito estranho. "Seria um erro genético?", pensou e preferiu não mais comê-la. Deixou-a de lado e pegou uma segunda maçã, esta um pouco menor e menos brilhante. Ao dividi-la ao meio, dois fios de cabelo ornamentavam o interior da fruta.

Pegou uma terceira maçã, se deparou com quatro fios de cabelo. Pegou outra, oito fios. Quanto mais maçãs ele cortava, mais cabeluda a maçã ficava. Mesmo assim, demonstrava persistência ao deixá-las num canto e escolher outras.

De repente, só havia sobrado uma única maçã na fruteira, uma maçã verde! Poderia ignorá-la e voltar a se deitar, mas era insistente e decidiu parti-la como fez com as demais.

Ambos os lados da verdinha estavam forrados de cabelo. Cabelos castanho-claros que pareciam um carpete dentro da fruta. Diante dessa inusitada situação, teve uma ideia ainda mais maluca: virou a maçã do avesso. Enfim, pode se deliciar com uma novidade à qual deu o nome de kiwi.

sábado, 18 de setembro de 2010

Tomando Nota


"Sou real. Nasci de uma máquina grande; eu e inúmeras irmãs verdinhas muito parecidas comigo. De fato a única coisa que nos distinguia era o número de identificação. Feita de papel-moeda, fui levada para passear num carro que, por algum motivo, diziam ser forte. Cheguei num renomado estabelecimento de crédito onde me guardaram num objeto curioso que chamavam de caixa. Fiquei na companhia de algumas primas de maior valor. Senti-me honrada!

Nesse mesmo dia, um executivo, rude e indelicado, foi pagar suas contas. O valor da dívida era alto: novecentos e noventa e nove reais. Ele deu à atendente dez cédulas azuizinhas e ela, sem dizer nada, simplesmente me entregou em troca. Surpreso pela conta não ter sido arredondada, o importante senhor saiu admirado com o lugar. Eis minha primeira façanha: aumentei o prestígio do banco!

Andando pela calçada, ele encontrou um mendigo implorando por auxílio monetário. Percebendo que o pobre cidadão faria melhor uso de mim, o áspero homem decidiu dar-me como esmola. Sem querer me gabar, consegui amolecer o petrificado coração de um ignorante!

Extremamente feliz porque havia ganhado um dinheirinho, o maltrapilho me olhava como se estivesse admirando o mais precioso diamante. Graças a mim, ele pôde comprar um cachorro-quente que, embora simples, serviu-lhe para forrar o estômago vazio. Assim matei a fome de um sem-teto!

O proprietário da lanchonete, após o expediente, passou numa casa lotérica onde me utilizou para fazer uma aposta. Dali a algumas horas, ficou imensamente maravilhado ao descobrir-se ganhador de uma bolada. Inesperadamente fiz o rapaz prosperar na vida!

O responsável pela parte financeira da casa de jogos, considerando-me lucro, resolveu agradar o filho e o presenteou comigo. O garotinho pulou de alegria e correu até a doçaria mais próxima para comprar um delicioso chocolate. Dessa maneira deixei uma criança feliz!

Na volta para casa, enquanto dirigia seu seminovo, a dona da loja de doces sentiu algumas tonturas e fortes dores de cabeça. Parou numa farmácia 24 horas e me usou para comprar um comprimido para seu mal-estar. Logo, ajudei a curar uma pessoa enferma!

Durante minha árdua vida, fui molhada, amassada, rasgada, remendada com fita adesiva, pisoteada, esquecida num cofrinho, jogada às traças... e, ainda assim, colaborei trazendo melhorias à vida das pessoas. Até que um dia desses acabei voltando ao banco. Esperava ser guardada naquela caixa onde conheceria novas amiguinhas, mas desta vez tive um destino diferente: fui recolhida. Agora estou novamente naquele carro forte e entendo o porquê do nome: ele está me levando à força rumo à destruição, afinal de contas, disseram que não tenho mais valor."

Depoimento de uma nota de 1 Real.

sábado, 11 de setembro de 2010

O homem que ganhou


Não eram nem 7h quando o telefone tocou.

— Alô! — atendeu, bocejando e com voz de sono.

— Parabéns! Você ganhou — comunicou alguém do outro lado da linha.

Ao ouvir o recado, pensou que ainda estava sonhando. Não acreditava que tinha ganhado, visto que jamais vencera um bingo, uma rifa ou um simples sorteio da quermesse.

Mesmo sem saber qual era o prêmio, essa primeira notícia da manhã já lhe esticara o sorriso de orelha a orelha.

A novidade se espalhou rápido.

Ele tomava banho quando alguém bateu na janela e lhe deu os parabéns.

Durante o café da manhã, a mulher e os filhos vieram recebê-lo de braços abertos.

Ao abrir a porta de sua casa, se deparou com metade da cidade esticando as mãos para cumprimentá-lo.

Ao chegar ao serviço, foi bem recebido pelos colegas e inclusive pelo chefe.
Passou o dia sendo felicitado.

Voltou para casa, portanto, achando que estava vivendo uma fantasia.

Não eram nem 22h quando o telefone novamente tocou.

— Alô! — atendeu animado.

Ao ouvir o recado, soube que o sonho realmente havia acabado. Comunicavam que, como ele não apareceu para retirar o prêmio, este havia sido sorteado a outro.

Mesmo com essa última notícia da noite, o sorriso permanecia de orelha a orelha. Naquele dia, já havia ganhado o mais importante: carinho, estima e generosidade.

sábado, 4 de setembro de 2010

Amoreco, Amoroco


Afirmar que o amor acontece apenas quando tem que acontecer é um equívoco, porque ele não é um acontecimento. O amor vem em libélulas: vaga tranquilamente por aí, até que nós, meros sapos, hora ou outra o abocanhamos com nossa língua comprida.

Não faz muito tempo, uma libélula dourada pousou próxima a mim. Evitá-la seria um erro; consumi-la, também — um labirinto sem saída: ou morreria de fome ou teria indigestão, não tinha outra escolha. (Não há como não amar, nem como amar sem sofrer. Portanto, a dica não é aprender a amar, mas aprender a sofrer.)

Libélulas são criaturas simples; o que elas fazem é que é incompreensível. Complicar a própria vida não era minha vontade, mas, num singelo gesto involuntário, senti pequeninas asas baterem rapidamente no céu da boca. Desmetaforizando a cena, eu enigmaticamente havia me apaixonado.

Da descrição de par perfeito, as palavras (insubestimáveis) tomaram vida e materializaram a pessoa que nem os sonhos foram capazes de inventar. Os fios de cabelo louros — os raios de sol que iluminavam minhas noites. A pele macia e clara — a fofa neve que enfeitava minha paisagem. Os olhos castanho-claros — as amêndoas raras que davam sabor à minha vida.

Do "oi" ao "tudo bem?"; do "qual o seu nome?" ao "que tal um cinema?"; do "adorei o filme" ao "adoro você". A sucessão das frases foi automática, a declaração foi espontânea. A objetividade foi respondida com subjetividade: apenas um sorriso negativamente amistoso e nada mais. O sol se apagou, a neve derreteu, as amêndoas apodreceram.

No balcão de um bar, os três sintomas de uma paixão não correspondida. Sintoma um: o mundo real se torna abstrato, desce um copo para amenizar o surrealismo. Sintoma dois: a ausência da pessoa amada permite a presença da depressão, engole uma dose para submergir as mágoas. Sintoma três: sim, toma três.

Gastrite! À beira de um precipício infinito, insisto em clamar o amor com palavras ocas; entretanto, apenas o eco me responde.

sábado, 28 de agosto de 2010

O menino que não acreditava em anjos


Miguel tentava, mas não conseguia acreditar em anjos. Acreditava em seres folclóricos, em monstros, em alienígenas, em criaturas místicas, em super-heróis e até em mutantes; mas não em anjos. Garotinhos loiros de cabelos cacheados, que protegem as pessoas, representavam a Miguel uma imagem fantasiosa.

Em Saci-Pererê, ele acreditava. Se Saci-Pererê não existisse, tampouco existiria uma data comemorativa para ele. Se oficializaram 31 de outubro como o dia dele e o país todo concorda com isso, com certeza Saci-Pererê está pulando por aí — trançando as crinas dos cavalos e fazendo com que animais desapareçam subitamente das fazendas.

Em Bicho Papão, ele acreditava. Se Bicho Papão não existisse, os pais não contariam esse tipo de história para os filhos. Se contam e demonstram sinceridade, é para que tomem cuidado com monstros que vivem em armários ou embaixo da cama. Pais nunca mentem — ainda mais sobre uma coisa tão horrenda quanto o Bicho Papão.

Em ETs, ele acreditava. Se os ETs não existissem, ninguém ficaria assustado com as luzes misteriosas no céu ou sinais enigmáticos nas campinas. Se todos se assustam e não conseguem desvendar a origem dessas ocorrências, é porque os ETs executam muito bem o seu papel — de subestimar a mente dos terráqueos.

Em fadas, ele acreditava. Se as fadas não existissem, não haveria motivo para que os dentes amolecessem. Se amolecem e caem é unicamente para manter o emprego das fadas — de trocá-los por moedas, quando colocados embaixo do travesseiro.

Em duendes, ele acreditava. Se os duendes não existissem, as coisas não sumiriam de repente. Se somem e depois reaparecem no mesmo lugar em que foram procuradas milhares de vezes, é porque os duendes estão cumprindo seu ofício — de aprontar com os seres humanos, escondendo seus objetos pessoais por alguns instantes.

Em Papai Noel, ele acreditava. Se Papai Noel não existisse, o Polo Norte já teria derretido por causa do aquecimento global. Se não derreteu e ainda continua bem visto, é graças à magia do Papai Noel — que, quando não é Natal, presenteia a região onde mora com vários sacos de gelo.

Em Coelhinho da Páscoa era mais difícil de acreditar, mas ele acreditava. Nunca havia visto um coelho pôr ovos, mas também nunca havia visto uma galinha botando. Se botava e eram gostosos na hora do almoço, o Coelhinho da Páscoa com certeza também botava seus ovos de chocolate para a hora da sobremesa.

Em bruxos, em vampiros, em zumbis e em lobisomens, ele também acreditava. Estavam presentes na maioria dos livros que ele lia, então não podiam ser ficção.

Miguel ia além: acreditava na verdade, na justiça e na paz mundial. Na bondade, na solidariedade e nos sentimentos. Acreditava no amor e na razão. Mas não acreditava em anjos. E pensando no seu não-acreditar, sobrevoava as nuvens nas quais brincava com seus amigos, Rafael e Gabriel.

sábado, 21 de agosto de 2010

Novidades Velhas


O dia das eleições estava marcado para dali a dois meses e, obviamente, as campanhas políticas deram início. Era fácil encontrar panfletos e cédulas em qualquer esquina. O difícil mesmo era saber quem dos candidatos seriam os melhores para representar os estados e a nação.

Como de costume, havia personalidades de todo os tipos concorrendo aos cargos políticos: professores, médicos, funcionários públicos, metalúrgicos, feirantes, as frutas, cantores, atores e outros profissionais de áreas nada relacionadas à política. Também de costume, eles ocupavam mais de cinquenta minutos do horário nobre do rádio e da tevê para expor suas propostas. A novidade da vez foi que as personagens dos livros infantis resolveram participar dessa instigante disputa.

Para deputadas estaduais, concorriam as princesas: Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida e Rapunzel. Para deputados federais, seus esposos: Príncipe Encantado I, Príncipe Encantado II, Príncipe Encantado III e Príncipe Encantado IV.

Escolher os senadores tornou-se um franco suplícyo. Figuras de garra competiam: Gato de Botas, Fera, Rei Leão e Lobo Mau. Mas também gente pequena, mas com um talento gigantesco: Pequeno Príncipe, Peter Pan e Chapeuzinho Vermelho.

Já para governador, houve uma verdadeira alckimia. Os candidatos que mais se destacavam, cada um em seu respectivo estado, eram: Saci Pererê, Mula Sem Cabeça, Sereia Iara, Boto Rosa e Boitatá.

Dilma coisa, não se teve dúvidas: para ocupar o posto principal, federalmente falando, o país dava gritos de ogro: "Shrek para presidente da república!" Obviamente, a Fiona se tornaria a primeira-dama, e o Burro seria o vice-presidente.

O inesperado veio com a apuração das urnas. Todas as personagens foram eleitas e demonstraram estar dispostas a transformar a pátria num conto de fadas. Será mesmo que, se nenhuma maçã envenenada ou agulha enfeitiçada atrapalhar, esse fantástico mandato deixará os habitantes felizes para sempre?

sábado, 14 de agosto de 2010

Companhias


O sol era uma incógnita naquela tarde de primavera. Desobediente à estação, o astro-rei parecia querer derreter o solitário cachorro abaixo de si — o pobre animal agora sabia o que era ser um marshmallow próximo da fogueira.

Correndo para baixo de um toldo, o cachorro viu seu reflexo na porta de vidro. Compreendeu que aquele não era outro cachorro, mas a imagem dele mesmo. Talvez fosse o único cachorro racional do planeta.

Imóvel, permanecia olhando para o vidro. Tinha o reflexo como única companhia e vice-versa. De repente, notou que já não era a única companhia do reflexo. O vidro passou a refletir a imagem de uma menina, que parecia estar em sua décima primavera.

Sentada no banco da praça, a garota devorava um sorvete — embora, pelo rosto sujo, fosse mais sensato concluir que o sorvete a devorava. Talvez nem tivesse se dado conta, mas naquela tarde completava mais um mês de vida, mais um longo mês de sua curta vida.

Como todo aniversário, aquele precisava de um presente. E ele estava bem a seus pés: o cachorro mostrava a língua e abanava o rabo. Queria sorvete? Fazia da cauda um ventilador? A menina considerou esta outra incógnita daquela tarde.

A menina olhava para o cachorro; o cachorro olhava para a menina; o sorvete olhava a cena e se derretia.

Uma mãe apareceu e puxou, pelo braço, a menina que se preocupou somente com o sorvete e ignorou aquele que lhe era um possível presente. O cachorro se viu obrigado a voltar para a transparente companhia da porta de vidro.

sábado, 7 de agosto de 2010

Geladamente Tropical


O país não era um ser humano, nem um animal, nem um vegetal, nem nada que pudesse ser considerado vivo aos olhares da ciência. Literalmente, era apenas um extenso território de terra banhado por um oceano de um lado e por demais porções de terra do outro. Mas ele tinha vida e, consequentemente, sentimentos. O país possuía um coração.

O coração regulava a temperatura do país. Como as pessoas que nele habitavam eram extremamente afáveis uns com os outros, o país era tropical, com clima aconchegante até mesmo no inverno. Ao invés dos habitantes serem agradecidos por isso e prestigiarem as maravilhas do país, só sabiam listar defeitos.

Os defeitos não eram, de fato, imperfeições, mas resultado da insatisfação contida nas pessoas. A música, por exemplo, não estava suficientemente boa. O país tinha seu ritmo característico, tinha intérpretes fascinantes, tinha canções extraordinárias... Mas, aparentemente, as vozes internacionais soavam melhor ao ouvido.

A literatura sofria com o mesmo problema. O país era rico em talentos literários, mais de cinquenta mil títulos lançados a cada ano, a maioria de notáveis escritores. Só que a literatura estrangeira parecia mais gostosa de ler.

Com o cinema era igual. Os filmes melhoravam a cada dia: as comédias estavam cada vez mais hilariantes; os dramas, enternecedores; as ações, de tirar o fôlego. Os atores colocavam tanta emoção em cena que a ficção parecia a mais pura realidade. Porém, o cinema do exterior demonstrava ter mais efeitos especiais e por isso era mais bacana.

Até a comida a população desprezava. Para que comer arroz e feijão ou banana quando se podia devorar um suculento hambúrguer ou rosquinhas "donuts".

A saúde, a educação, o turismo... Em tudo havia qualidades, mas para as pessoas nada estava bom. Só focalizavam os pontos negativos de cada tema. Ninguém sabia, mas o país ouvia e reagia tristemente a cada comentário ruim.

Conforme as críticas destrutivas aumentavam, os sentimentos do país foram esfriando. O coração foi gelando e, inusitadamente, nevou no país. Às vezes, o país ariscava uns meios sorrisos, fazendo com que fracos raios de sol surgissem esporadicamente, mas o frio definitivamente imperava. O país sucumbiu ao inverno eterno.

sábado, 31 de julho de 2010

Sotaque Canadense

Com base na notícia:
"Justin Bieber adora comer jujubas antes de subir aos palcos" (Portal R7, 27/07/2010)

Ele era só mais um garoto canadense. Gostava de ser garoto e gostava de ser canadense, mas não estava feliz em ser só mais um. Por isso decidiu participar de um concurso de canto e, com mérito, conseguiu a medalha de prata. Sua mãe filmou a audição e, para que os parentes distantes pudessem assistir, colocou o vídeo na internet.

Como uma fofoca feita por uma dona-de-casa fuxiqueira, o vídeo se espalhou rapidamente pela extensa vizinhança chamada Terra, resultando em vários toques de telefone na casa do garoto. Em uma dessas ligações, o convite: ir aos Estados Unidos para uma entrevista com um renomado empresário musical.

Tal como as andorinhas, o garoto migrou para o sul e, com seu suposto talento e seu sotaque bem nítido, gravou algumas canções. Insistindo na Internet, o mesmo site de vídeos foi utilizado como local de divulgação.

Enquanto o canto das sereias seduzia os ouvidos masculinos, a voz do garoto conquistava corações de adolescentes apaixonadas em todas as partes do mundo. Em pouco tempo, já tinha a fama e o dinheiro que jamais esperava ter.

Não se importava por quererem transformá-lo em uma espécie de "Michael Jackson da geração 2010" nem pelos milhares de boatos que surgiam sobre ele. Os trocadilhos com seu cabelo, com suas coreografias e até mesmo com o seu nome eram insignificantes mediante tanta adoração.

Os dias foram passando e seu poder, aumentando. Conseguiu participar da trilha sonora de um filme que provavelmente será sucesso de bilheterias; superou loiras famosas e idolatradas na quantidade de visualizações no tal site de vídeos; recebeu um convite especial para participar de uma série de tevê norte-americana; decidiu que não tira mais fotos por menos de quatro mil dólares; autorizou que fizessem um longa-metragem contando os impactantes momentos que marcaram seus longos dezesseis anos de vida — como a sofrida morte de seu hamster, fato que lhe partiu o coração.

Mesmo sem querer, a todo instante ele é falado, comentado, estimado, louvado e outros ados. Agora, por exemplo, ele faz um escritor e diversos leitores de uma cidade, no interior do Brasil, perderem alguns minutos de seu tempo com uma crônica sobre a vida dele. Enquanto isso, ele come jujubas tranquilamente e se prepara para mais um show que estufará ainda mais sua conta-poupança.

Mídia à parte, esse garoto canadense é um adolescente normal; infelizmente, ele próprio já não sabe mais disso.

sábado, 24 de julho de 2010

Férias Eternas

Com base na notícia:
"Filho da atriz Cissa Guimarães morre atropelado no Rio" (Yahoo! Notícias, 20/07/2010)

O garoto era apenas um universitário que usufruía das férias de julho. Depois de ter terminado o terceiro semestre de Engenharia, o mês de descanso foi muito bem-vindo. Às oito da manhã, acordou, disposto a tomar o café da manhã na casa de um amigo e passar o resto do dia reunido com a galera.

Saiu com o skate e fez um longo percurso, aproveitando para sentir a brisa que lhe refrescava a face corada, saboreando o inigualável ar da manhã carioca. As horas seguintes se resumiram em diversão: videogame, internet, música, piadas, praia, curtição. Quando teve tempo de perceber, já estava anoitecendo.

Pegou seu skate e disse que iria embora. O amigo convenceu-o a ficar: o dia seguinte seria 20 de julho, dia do amigo, poderiam passar a virada juntos. Não viu motivos que impedissem uma noitada com a turma, por isso decidiu acatar o pedido. Com refrigerante e salgadinhos, fizeram uma balada caseira.

O celular tocou à uma e meia da manhã. Sua mãe perguntava se demoraria a voltar para casa. Respondeu que não se preocupasse, já estava a caminho. Com o skate e um atalho, chegaria rapidamente. Dois amigos não viram motivos que impedissem um role pela madrugada, então quiseram acompanhá-lo.

Optaram por uma estrada interditada, estaria mais sossegada. Eles curtiram o clima desértico e sugeriram uma corrida sobre rodas para saber quem cruzaria primeiro o túnel logo adiante. Do outro lado do túnel, três amigos com seus respectivos automóveis tiveram a mesma ideia, a da corrida sobre rodas num lugar interditado onde supostamente não haveria ninguém.

Largaram.

O futuro engenheiro calculou a adrenalina e mediu as consequências, mas não somou o inesperado. Um carro em alta velocidade demoliu sua construção. O caminho para casa tornou-se, inconscientemente, o caminho para o hospital. O celular tocou novamente, uma e cinquenta da manhã, mas a chamada de uma mãe aflita caiu na caixa postal.

Às oito da manhã, a notícia de uma perda lastimável, o mês de descanso deu lugar ao descanso eterno. Silêncio. O garoto foi apenas um universitário que usufruiu das férias de julho.

sábado, 17 de julho de 2010

Europa Descarrilada

Com base na notícia:
"Atentados no metrô de Moscou matam ao menos 38" (Revista Veja, 29/03/2010)

Os britânicos tomavam seu pontual e tradicionalíssimo chá matinal; os portugueses assistiam ao programa de culinária exibido na televisão; os taiwaneses comemoravam o dia da juventude; os brasileiros festejavam o aniversário de duas metrópoles, Curitiba e Salvador; os sumérios homenageavam à Ishtar, deusa mitológica. Era 29 de março e os russos andavam de trem.

Um vagão superlotado, gente de Moscou, cada qual com seu objetivo trilhado. Uma mulher grávida com consulta marcada no obstetra; um estudante adolescente rumo à aula de ciências que lhe aguardava; um poeta amador que só queria divulgar seus versos metrificados e fazer uma autopromoção; uma senhora de cabelos grisalhos que falava sozinha, em busca de alguém que ouvisse suas loucuras. Algumas vidas entre muitas outras.

O rapaz de quinze anos estava cansado de sua vida. Sabia que os dias seguintes seriam iguais aos dias passados. Sentia-se entediado de uma semana que apenas começava. Para se distrair da rotina, fazia algo também rotineiro: escutava música moderna em seu celular moderno. O alto-falante ligado, o suposto desejo de compartilhar o lixo musical americano com os demais passageiros.

O ritmo acelerado de uma canção para corações acelerados — All the single ladies, now put your hands up — se misturava com as palavras proclamadas pelo frustrado escritor de meia idade.

O tido poeta estava cansado de sua vida. Todos os dias, pegava sempre o mesmo metrô, recitando sempre os mesmos versos, sempre para as mesmas pessoas. A mesmice era porque considerava aquela tentativa de trova a mais bem feita por ele.

A rima rara de um poema hendecassílabo — Não preciso de um caldeirão de água quente / Basta-me uma panelinha de água morna / Não quero cozer um ovo de avestruz / Só cozinharei um ovo de codorna —, acompanhada pela trilha sonora da Beyoncé, atrapalhava a história contada pela pobre anciã.

A idosa vista como louca estava cansada de sua vida. Haviam morrido os pais, os irmãos, o marido, o filho. Não tinha mais família, não tinha amigos e, assim, acabava não tendo nem a si mesma. Queria desabafar os tropeços que levara, mas tropeçava nas próprias palavras e não era entendida por ninguém.

O relato sem sentido — Eu tinha um gato que não era meu e tinha um peixe que o gato comeu — juntamente da poesia contemporânea e da balada (badalada?), irritava a grávida que só queria um minuto de sossego antes de ter que se despir e se submeter a um ultrassom transvaginal.

A futura mamãe estava cansada de sua vida. Já era crescida, a idade na casa dos trinta, mas não conseguia assumir o fardo de mãe solteira. A hipótese de um aborto já lhe perturbava muito a mente. Em meio a uma confissão nonsense, a um exemplo de literatura marginal e a uma melodia de black music, não aguentou o estresse sonoro e desembestou a gritar.

O grito foi um pedido de silêncio bem aceito: o metrô parou, as pessoas também. No entanto, não demorou a que uma nova perturbação ocorresse. A garota loura sentada no fundo ficou em pé e revelou o mecanismo que escondia sob o casaco. Assim que a bomba fosse acionada, todos estariam em uma roleta russa, sem saber quais sobreviveriam e quais dariam adeus à vida da que estavam cansados.

Um chá amargo difícil de ser ingerido, um erro de gravação que não pôde ser evitado, juventudes corrompidas, aniversários interrompidos. Uma situação que nem deuses foram capazes de impedir.

Da explosão, saíram os corpos. O garoto, com as mãos mutiladas, não agradeceu por poder faltar às aulas daquela quinzena. O poeta, sem a pele do abdome, não ficou feliz por viver uma grande emoção que pudesse ser transcrita para o papel. A velha, cuja perna direita estava ensanguentada, não estava satisfeita por ter uma nova história para contar com detalhes.

Sem mais aborrecimentos, dúvidas ou queixas, a moça grávida, cruelmente decepada, representava, no chão do metrô, duas vidas extintas, duas frases que receberam o impiedoso ponto final — sendo que uma ainda nem havia aberto as aspas.