sábado, 31 de julho de 2010

Sotaque Canadense

Com base na notícia:
"Justin Bieber adora comer jujubas antes de subir aos palcos" (Portal R7, 27/07/2010)

Ele era só mais um garoto canadense. Gostava de ser garoto e gostava de ser canadense, mas não estava feliz em ser só mais um. Por isso decidiu participar de um concurso de canto e, com mérito, conseguiu a medalha de prata. Sua mãe filmou a audição e, para que os parentes distantes pudessem assistir, colocou o vídeo na internet.

Como uma fofoca feita por uma dona-de-casa fuxiqueira, o vídeo se espalhou rapidamente pela extensa vizinhança chamada Terra, resultando em vários toques de telefone na casa do garoto. Em uma dessas ligações, o convite: ir aos Estados Unidos para uma entrevista com um renomado empresário musical.

Tal como as andorinhas, o garoto migrou para o sul e, com seu suposto talento e seu sotaque bem nítido, gravou algumas canções. Insistindo na Internet, o mesmo site de vídeos foi utilizado como local de divulgação.

Enquanto o canto das sereias seduzia os ouvidos masculinos, a voz do garoto conquistava corações de adolescentes apaixonadas em todas as partes do mundo. Em pouco tempo, já tinha a fama e o dinheiro que jamais esperava ter.

Não se importava por quererem transformá-lo em uma espécie de "Michael Jackson da geração 2010" nem pelos milhares de boatos que surgiam sobre ele. Os trocadilhos com seu cabelo, com suas coreografias e até mesmo com o seu nome eram insignificantes mediante tanta adoração.

Os dias foram passando e seu poder, aumentando. Conseguiu participar da trilha sonora de um filme que provavelmente será sucesso de bilheterias; superou loiras famosas e idolatradas na quantidade de visualizações no tal site de vídeos; recebeu um convite especial para participar de uma série de tevê norte-americana; decidiu que não tira mais fotos por menos de quatro mil dólares; autorizou que fizessem um longa-metragem contando os impactantes momentos que marcaram seus longos dezesseis anos de vida — como a sofrida morte de seu hamster, fato que lhe partiu o coração.

Mesmo sem querer, a todo instante ele é falado, comentado, estimado, louvado e outros ados. Agora, por exemplo, ele faz um escritor e diversos leitores de uma cidade, no interior do Brasil, perderem alguns minutos de seu tempo com uma crônica sobre a vida dele. Enquanto isso, ele come jujubas tranquilamente e se prepara para mais um show que estufará ainda mais sua conta-poupança.

Mídia à parte, esse garoto canadense é um adolescente normal; infelizmente, ele próprio já não sabe mais disso.

sábado, 24 de julho de 2010

Férias Eternas

Com base na notícia:
"Filho da atriz Cissa Guimarães morre atropelado no Rio" (Yahoo! Notícias, 20/07/2010)

O garoto era apenas um universitário que usufruía das férias de julho. Depois de ter terminado o terceiro semestre de Engenharia, o mês de descanso foi muito bem-vindo. Às oito da manhã, acordou, disposto a tomar o café da manhã na casa de um amigo e passar o resto do dia reunido com a galera.

Saiu com o skate e fez um longo percurso, aproveitando para sentir a brisa que lhe refrescava a face corada, saboreando o inigualável ar da manhã carioca. As horas seguintes se resumiram em diversão: videogame, internet, música, piadas, praia, curtição. Quando teve tempo de perceber, já estava anoitecendo.

Pegou seu skate e disse que iria embora. O amigo convenceu-o a ficar: o dia seguinte seria 20 de julho, dia do amigo, poderiam passar a virada juntos. Não viu motivos que impedissem uma noitada com a turma, por isso decidiu acatar o pedido. Com refrigerante e salgadinhos, fizeram uma balada caseira.

O celular tocou à uma e meia da manhã. Sua mãe perguntava se demoraria a voltar para casa. Respondeu que não se preocupasse, já estava a caminho. Com o skate e um atalho, chegaria rapidamente. Dois amigos não viram motivos que impedissem um role pela madrugada, então quiseram acompanhá-lo.

Optaram por uma estrada interditada, estaria mais sossegada. Eles curtiram o clima desértico e sugeriram uma corrida sobre rodas para saber quem cruzaria primeiro o túnel logo adiante. Do outro lado do túnel, três amigos com seus respectivos automóveis tiveram a mesma ideia, a da corrida sobre rodas num lugar interditado onde supostamente não haveria ninguém.

Largaram.

O futuro engenheiro calculou a adrenalina e mediu as consequências, mas não somou o inesperado. Um carro em alta velocidade demoliu sua construção. O caminho para casa tornou-se, inconscientemente, o caminho para o hospital. O celular tocou novamente, uma e cinquenta da manhã, mas a chamada de uma mãe aflita caiu na caixa postal.

Às oito da manhã, a notícia de uma perda lastimável, o mês de descanso deu lugar ao descanso eterno. Silêncio. O garoto foi apenas um universitário que usufruiu das férias de julho.

sábado, 17 de julho de 2010

Europa Descarrilada

Com base na notícia:
"Atentados no metrô de Moscou matam ao menos 38" (Revista Veja, 29/03/2010)

Os britânicos tomavam seu pontual e tradicionalíssimo chá matinal; os portugueses assistiam ao programa de culinária exibido na televisão; os taiwaneses comemoravam o dia da juventude; os brasileiros festejavam o aniversário de duas metrópoles, Curitiba e Salvador; os sumérios homenageavam à Ishtar, deusa mitológica. Era 29 de março e os russos andavam de trem.

Um vagão superlotado, gente de Moscou, cada qual com seu objetivo trilhado. Uma mulher grávida com consulta marcada no obstetra; um estudante adolescente rumo à aula de ciências que lhe aguardava; um poeta amador que só queria divulgar seus versos metrificados e fazer uma autopromoção; uma senhora de cabelos grisalhos que falava sozinha, em busca de alguém que ouvisse suas loucuras. Algumas vidas entre muitas outras.

O rapaz de quinze anos estava cansado de sua vida. Sabia que os dias seguintes seriam iguais aos dias passados. Sentia-se entediado de uma semana que apenas começava. Para se distrair da rotina, fazia algo também rotineiro: escutava música moderna em seu celular moderno. O alto-falante ligado, o suposto desejo de compartilhar o lixo musical americano com os demais passageiros.

O ritmo acelerado de uma canção para corações acelerados — All the single ladies, now put your hands up — se misturava com as palavras proclamadas pelo frustrado escritor de meia idade.

O tido poeta estava cansado de sua vida. Todos os dias, pegava sempre o mesmo metrô, recitando sempre os mesmos versos, sempre para as mesmas pessoas. A mesmice era porque considerava aquela tentativa de trova a mais bem feita por ele.

A rima rara de um poema hendecassílabo — Não preciso de um caldeirão de água quente / Basta-me uma panelinha de água morna / Não quero cozer um ovo de avestruz / Só cozinharei um ovo de codorna —, acompanhada pela trilha sonora da Beyoncé, atrapalhava a história contada pela pobre anciã.

A idosa vista como louca estava cansada de sua vida. Haviam morrido os pais, os irmãos, o marido, o filho. Não tinha mais família, não tinha amigos e, assim, acabava não tendo nem a si mesma. Queria desabafar os tropeços que levara, mas tropeçava nas próprias palavras e não era entendida por ninguém.

O relato sem sentido — Eu tinha um gato que não era meu e tinha um peixe que o gato comeu — juntamente da poesia contemporânea e da balada (badalada?), irritava a grávida que só queria um minuto de sossego antes de ter que se despir e se submeter a um ultrassom transvaginal.

A futura mamãe estava cansada de sua vida. Já era crescida, a idade na casa dos trinta, mas não conseguia assumir o fardo de mãe solteira. A hipótese de um aborto já lhe perturbava muito a mente. Em meio a uma confissão nonsense, a um exemplo de literatura marginal e a uma melodia de black music, não aguentou o estresse sonoro e desembestou a gritar.

O grito foi um pedido de silêncio bem aceito: o metrô parou, as pessoas também. No entanto, não demorou a que uma nova perturbação ocorresse. A garota loura sentada no fundo ficou em pé e revelou o mecanismo que escondia sob o casaco. Assim que a bomba fosse acionada, todos estariam em uma roleta russa, sem saber quais sobreviveriam e quais dariam adeus à vida da que estavam cansados.

Um chá amargo difícil de ser ingerido, um erro de gravação que não pôde ser evitado, juventudes corrompidas, aniversários interrompidos. Uma situação que nem deuses foram capazes de impedir.

Da explosão, saíram os corpos. O garoto, com as mãos mutiladas, não agradeceu por poder faltar às aulas daquela quinzena. O poeta, sem a pele do abdome, não ficou feliz por viver uma grande emoção que pudesse ser transcrita para o papel. A velha, cuja perna direita estava ensanguentada, não estava satisfeita por ter uma nova história para contar com detalhes.

Sem mais aborrecimentos, dúvidas ou queixas, a moça grávida, cruelmente decepada, representava, no chão do metrô, duas vidas extintas, duas frases que receberam o impiedoso ponto final — sendo que uma ainda nem havia aberto as aspas.