quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A cor dos meus olhos


Prestes a fazer dezoito anos, dei início à coleta de documentos necessários para tirar a carteira de motorista. Tive que atualizar minha identidade, solicitando a segunda via do RG. A primeira, tirei quando era criança — estava loiro na foto e não tinha um nariz arrebatador.

O primeiro passo se resumia em ir a um despachante e preencher o formulário de requerimento. Fui. Ou melhor, fomos: eu, meu pai à esquerda, minha mãe à direita e minha irmã mais velha atrás. Sem fila, me dirigi ao balcão e coloquei a certidão de nascimento na frente da mocinha.

No computador, ela transcrevia todas as informações sobre mim. Não encontrando uma que era exigida, perguntou:

— Qual a cor dos seus olhos?

— Castanhos.

Respondi tranquilamente, sem esperar os comentários nervosos que viriam a seguir.

— Está louco? Seus olhos são marrons.

— Nem castanhos nem marrons. Seus olhos são cor de mel.

— Falando em cor e em olhos, vocês só podem estar daltônicos. É óbvio que seus olhos são nogueirados.

Fiquei mudo, olhando estático para a mocinha.

— Não precisa arregalar os olhos que eu não posso opinar. Mas, se eu pudesse, concordaria com seu pai. Eles parecem marrons.

Minha irmã se revoltou com o comentário e, puxando-me pelo braço, me arrastou para fora do estabelecimento e parou um casal que passava pela rua. Pediu para que eles dessem opinião sobre a cor.

— São castanhos!

— Lógico que não! Eles são nogueirados.

— Pois, agora que você está falando, eles parecem realmente nogueirados.
Até aquele dia, eu sequer tinha ouvido alguém dizer que fulano ou beltrano tinha os olhos nogueirados. O adjetivo foi uma novidade para mim. Já que a cor dos meus olhos era tão indefinida, talvez devessem ser dessa cor rara mesmo.

Voltei decidido que meus olhos eram nogueirados. No entanto, antes que eu pudesse assumir a nogueirês de meus olhos, uma estagiária que estava digitalizando uma pilha de papéis, me flertou:

— Você é tão bonitinho com esses seus olhos cor de mel.

Castanhos, marrons, nogueirados e cor de mel. Parecia proposital essa discórdia, apenas para que eu não pudesse tirar novos documentos e, consequentemente, não pudesse ficar apto para dirigir. Talvez me considerassem um terror no volante antes mesmo de eu me sentar na frente de um.

— Por que você não faz uma enquete?

Inicialmente, pensei que a balconista estivesse sendo irônica, mas vi que a ideia era séria e podia dar certo. Aproveitei todos os meus perfis em sites de relacionamento.

Não deu muito certo porque a maioria optou pela alternativa Outros. Tive que contratar o IBOPE e o Datafolha para realizarem pesquisas que determinassem a cor, de fato. Os resultados, todavia, foram distintos. O de um instituto acusou marrom, enquanto o do outro registrou cor de mel.

Já estava entrando em desespero e a certeza da dúvida sobre a minha cor ocular começou a se expandir. Entraram em contato comigo. Era da Justiça Eleitoral, oferecendo urnas eletrônicas para que eu pudesse fazer uma votação clara e aberta a todos os públicos.

O domingo seguinte virou feriado. O país se uniu com o dever de votar e eleger a verdadeira cor dos meus olhos. Muita gente não fazia ideia de quem eu era, mesmo assim foi obrigado a ir às urnas e escolher uma opção.

No fim do dia, saiu o resultado. No dia seguinte, logo pela manhã, voltei ao despachante. A mocinha estava lá, pronta para terminar de preencher o formulário. Ela repetiu a pergunta:

— Cor dos olhos?

E eu, cheio de mim e ciente da verdade própria, respondi em alto e em bom tom:

— Castanhos.

— Castanho claro ou escuro?

sábado, 11 de dezembro de 2010

πercings


Tinha 15 anos. Por mais que aparentasse ter 17 (ou mais), a cédula de identidade e a certidão de nascimento provavam que ele ainda iniciava a segunda parte das cinco que compunham sua vida. Embora na flor da idade, não fumava, não ingeria bebidas alcoólicas, não usava drogas, não gostava de tatuagem... Apenas morria de vontade de fazer um piercing.

Ele via as outras pessoas usando, achava bonito e queria igual. O maior problema, no entanto, era encontrar o lugar mais indicado para perfurar. Por algum motivo, pensava em fazer um piercing na ponte do nariz, a formação óssea acima da cavidade nasal, parte que fica entre os olhos. Mas, por algum outro motivo, sabia que não combinaria consigo — o formato do rosto, o cabelo longo, a cor branco-pálido... Algo em si provocaria desarmonia com uma argolinha na ponte.

Parou e começou a analisar parte por parte do corpo: sobrancelha, orelha e umbigo eram lugares muito comuns; clavícula, calcanhar e atrás do joelho eram muito incomuns. Chegou a pensar em colocar nos órgãos genitais, mas que graça teria? Quem iria ver? Nem namorada ele tinha.

Essa situação-problema precisava ser resolvida, e ele teve a genial ideia de usar a matemática, a matéria que mais gostava, para ajudá-lo. Esboçou um gráfico com a própria silhueta, calculou perímetro e área, achou os ângulos, raios e diâmetros possíveis; somou, subtraiu, dividiu; multiplicou... Fez contas que muitas pessoas nem sabem que existem. O resultado, portanto, saiu com 100% de precisão: o ideal seria fazer um piercing na franja.

Sem pensar duas vezes — o cérebro já havia se cansado de pensar —, juntou as economias que guardava num pote de biscoitos e foi para o studio de piercing confiável mais próximo de sua casa.

Desde então, há quem diga que ele usa presilhas; ele garante que são piercings!

sábado, 4 de dezembro de 2010

Beleza em Caps Lock


Acordar não é simplesmente abrir os olhos após algumas horas inconsciente. Acordar é estimular involuntariamente as pálpebras para que elas se ergam e revelem a claridade às delicadas pupilas. Acordar é um esforço tão grande que cansa minha beleza.

Falando assim, parece até que sou narcisista — ou como chamam hoje em dia, metrossexual. Não sou. Não sou, mas penso que gostaria de ser, caso fosse mulher.

Para começar, investiria em maquiagem. Batom, blush, rouge e quaisquer outros tapa-imperfeições que dão nomes a bandas musicais femininas. De fato, enriqueceria os donos das fábricas de cosméticos, mas também tornaria rica a minha pele com tanta beleza industrializada.

O segundo passo seria fazer uma dieta. Dieta da Lua, dieta da água, dieta do carboidrato, dieta da diarreia... Tentaria de tudo para me tornar sósia da Olívia Palito e imitar a tecnologia: as televisões que afinam, os monitores que ficam mais leves e a conta bancária que fica cada vez mais lisa.

Voltaria, então, ao salão de beleza, o mesmo que rebocara meu rosto há dois parágrafos. Desta vez, porém, seria para deixar meu cabelo como o de jornalista da Rede Globo. Creme alisante, formol, esperma de pato... Para que meus cachinhos sumissem, permitiria a visita das mais inusitadas substâncias — e até abdicaria do posto de musa de cabelos de caracóis dos Irmãos Carlos.

Providenciaria, a seguir, minha cirurgia plástica para me transformar em mulher-fruta. Tiraria a roupa na frente do médico para que ele, com uma caneta co-piloto, fizesse as marcações necessárias. "Marque-me e Bismarck-me, doutor." O mínimo que ele poderia fazer siliconizar meus seios e nádegas, mas de uma forma que me deixasse aumentá-los posteriormente e ir aumentando e aumentando até que eles explodissem e eu corresse risco de morte. Se eu morresse, morreria gostosa.

Porém não sou mulher e, infelizmente, não tenho paciência para zelar de mim próprio sendo homem. Não tenho disposição para frequentar academias e participar de competições como "a batata da perna mais cheia de veias", nem de ficar sem camisa em frente ao espelho, tirando fotografias, na tentativa de estampar o livro dos recordes como "o abdome mais definido do mundo".

Acordar é um ato definitivamente desgastador. Infelizmente, sou tolo e não consigo cerrar os olhos; prefiro me cansar e acordar para a vida.