sábado, 25 de setembro de 2010

Maçãs Cabeludas


Acordou sentindo-se absurdamente grávido. Os olhos arregalados tentavam, sem sucesso, levantar o corpo, e o paladar mostrava o desejo insólito de comer maçã em plenas três da manhã. Ainda era madrugada, mas o estômago roncava como se já passasse do meio-dia.

Ansioso e cobiçoso de um pedaço de maçã bem suculento, correu à cozinha e acendeu rapidamente a lâmpada que iluminou a amada fruteira e as almejadas maçãs. Gala, argentina, fuji... O tipo da maçã não importava; o essencial era que ele devorasse uma.

Escolheu a mais vermelha e brilhante. Apenas pela casca, ele pôde calcular quão doce era seu sabor. Com água na boca — na verdade, saliva na boca —, ele decidiu não abocanhá-la logo de cara, mas parti-la ao meio e apreciá-la lentamente. Qual foi uma grande surpresa encontrar um fio de cabelo na polpa.

Olhou aquilo, achando muito estranho. "Seria um erro genético?", pensou e preferiu não mais comê-la. Deixou-a de lado e pegou uma segunda maçã, esta um pouco menor e menos brilhante. Ao dividi-la ao meio, dois fios de cabelo ornamentavam o interior da fruta.

Pegou uma terceira maçã, se deparou com quatro fios de cabelo. Pegou outra, oito fios. Quanto mais maçãs ele cortava, mais cabeluda a maçã ficava. Mesmo assim, demonstrava persistência ao deixá-las num canto e escolher outras.

De repente, só havia sobrado uma única maçã na fruteira, uma maçã verde! Poderia ignorá-la e voltar a se deitar, mas era insistente e decidiu parti-la como fez com as demais.

Ambos os lados da verdinha estavam forrados de cabelo. Cabelos castanho-claros que pareciam um carpete dentro da fruta. Diante dessa inusitada situação, teve uma ideia ainda mais maluca: virou a maçã do avesso. Enfim, pode se deliciar com uma novidade à qual deu o nome de kiwi.

sábado, 18 de setembro de 2010

Tomando Nota


"Sou real. Nasci de uma máquina grande; eu e inúmeras irmãs verdinhas muito parecidas comigo. De fato a única coisa que nos distinguia era o número de identificação. Feita de papel-moeda, fui levada para passear num carro que, por algum motivo, diziam ser forte. Cheguei num renomado estabelecimento de crédito onde me guardaram num objeto curioso que chamavam de caixa. Fiquei na companhia de algumas primas de maior valor. Senti-me honrada!

Nesse mesmo dia, um executivo, rude e indelicado, foi pagar suas contas. O valor da dívida era alto: novecentos e noventa e nove reais. Ele deu à atendente dez cédulas azuizinhas e ela, sem dizer nada, simplesmente me entregou em troca. Surpreso pela conta não ter sido arredondada, o importante senhor saiu admirado com o lugar. Eis minha primeira façanha: aumentei o prestígio do banco!

Andando pela calçada, ele encontrou um mendigo implorando por auxílio monetário. Percebendo que o pobre cidadão faria melhor uso de mim, o áspero homem decidiu dar-me como esmola. Sem querer me gabar, consegui amolecer o petrificado coração de um ignorante!

Extremamente feliz porque havia ganhado um dinheirinho, o maltrapilho me olhava como se estivesse admirando o mais precioso diamante. Graças a mim, ele pôde comprar um cachorro-quente que, embora simples, serviu-lhe para forrar o estômago vazio. Assim matei a fome de um sem-teto!

O proprietário da lanchonete, após o expediente, passou numa casa lotérica onde me utilizou para fazer uma aposta. Dali a algumas horas, ficou imensamente maravilhado ao descobrir-se ganhador de uma bolada. Inesperadamente fiz o rapaz prosperar na vida!

O responsável pela parte financeira da casa de jogos, considerando-me lucro, resolveu agradar o filho e o presenteou comigo. O garotinho pulou de alegria e correu até a doçaria mais próxima para comprar um delicioso chocolate. Dessa maneira deixei uma criança feliz!

Na volta para casa, enquanto dirigia seu seminovo, a dona da loja de doces sentiu algumas tonturas e fortes dores de cabeça. Parou numa farmácia 24 horas e me usou para comprar um comprimido para seu mal-estar. Logo, ajudei a curar uma pessoa enferma!

Durante minha árdua vida, fui molhada, amassada, rasgada, remendada com fita adesiva, pisoteada, esquecida num cofrinho, jogada às traças... e, ainda assim, colaborei trazendo melhorias à vida das pessoas. Até que um dia desses acabei voltando ao banco. Esperava ser guardada naquela caixa onde conheceria novas amiguinhas, mas desta vez tive um destino diferente: fui recolhida. Agora estou novamente naquele carro forte e entendo o porquê do nome: ele está me levando à força rumo à destruição, afinal de contas, disseram que não tenho mais valor."

Depoimento de uma nota de 1 Real.

sábado, 11 de setembro de 2010

O homem que ganhou


Não eram nem 7h quando o telefone tocou.

— Alô! — atendeu, bocejando e com voz de sono.

— Parabéns! Você ganhou — comunicou alguém do outro lado da linha.

Ao ouvir o recado, pensou que ainda estava sonhando. Não acreditava que tinha ganhado, visto que jamais vencera um bingo, uma rifa ou um simples sorteio da quermesse.

Mesmo sem saber qual era o prêmio, essa primeira notícia da manhã já lhe esticara o sorriso de orelha a orelha.

A novidade se espalhou rápido.

Ele tomava banho quando alguém bateu na janela e lhe deu os parabéns.

Durante o café da manhã, a mulher e os filhos vieram recebê-lo de braços abertos.

Ao abrir a porta de sua casa, se deparou com metade da cidade esticando as mãos para cumprimentá-lo.

Ao chegar ao serviço, foi bem recebido pelos colegas e inclusive pelo chefe.
Passou o dia sendo felicitado.

Voltou para casa, portanto, achando que estava vivendo uma fantasia.

Não eram nem 22h quando o telefone novamente tocou.

— Alô! — atendeu animado.

Ao ouvir o recado, soube que o sonho realmente havia acabado. Comunicavam que, como ele não apareceu para retirar o prêmio, este havia sido sorteado a outro.

Mesmo com essa última notícia da noite, o sorriso permanecia de orelha a orelha. Naquele dia, já havia ganhado o mais importante: carinho, estima e generosidade.

sábado, 4 de setembro de 2010

Amoreco, Amoroco


Afirmar que o amor acontece apenas quando tem que acontecer é um equívoco, porque ele não é um acontecimento. O amor vem em libélulas: vaga tranquilamente por aí, até que nós, meros sapos, hora ou outra o abocanhamos com nossa língua comprida.

Não faz muito tempo, uma libélula dourada pousou próxima a mim. Evitá-la seria um erro; consumi-la, também — um labirinto sem saída: ou morreria de fome ou teria indigestão, não tinha outra escolha. (Não há como não amar, nem como amar sem sofrer. Portanto, a dica não é aprender a amar, mas aprender a sofrer.)

Libélulas são criaturas simples; o que elas fazem é que é incompreensível. Complicar a própria vida não era minha vontade, mas, num singelo gesto involuntário, senti pequeninas asas baterem rapidamente no céu da boca. Desmetaforizando a cena, eu enigmaticamente havia me apaixonado.

Da descrição de par perfeito, as palavras (insubestimáveis) tomaram vida e materializaram a pessoa que nem os sonhos foram capazes de inventar. Os fios de cabelo louros — os raios de sol que iluminavam minhas noites. A pele macia e clara — a fofa neve que enfeitava minha paisagem. Os olhos castanho-claros — as amêndoas raras que davam sabor à minha vida.

Do "oi" ao "tudo bem?"; do "qual o seu nome?" ao "que tal um cinema?"; do "adorei o filme" ao "adoro você". A sucessão das frases foi automática, a declaração foi espontânea. A objetividade foi respondida com subjetividade: apenas um sorriso negativamente amistoso e nada mais. O sol se apagou, a neve derreteu, as amêndoas apodreceram.

No balcão de um bar, os três sintomas de uma paixão não correspondida. Sintoma um: o mundo real se torna abstrato, desce um copo para amenizar o surrealismo. Sintoma dois: a ausência da pessoa amada permite a presença da depressão, engole uma dose para submergir as mágoas. Sintoma três: sim, toma três.

Gastrite! À beira de um precipício infinito, insisto em clamar o amor com palavras ocas; entretanto, apenas o eco me responde.