sábado, 31 de dezembro de 2011

O invejoso de pelos



A coisa mais triste dos meus 14 anos foi eu não ter tido pelos nas axilas. Os garotos da mesma idade carregavam até os primeiros vestígios de barba e bigode, mas eu não tinha um reles fiapo debaixo do braço.

A importância dos pelos nas axilas para um menino é maior do que a de passar de nível no videogame ou beijar a mais sensual da escola. Nada deixa um adolescente mais másculo e confiante do que os pelos nas axilas — pelos para serem exibidos com o levantar de braços em comemoração ao fechamento do The Prince of Persia XIII; pelos para fazerem cócegas no ombro da namorada durante um abraço de praia.

O mês de março foi o que mais me irritou, pois os outros garotos iam para a escola de camiseta sem mangas, todos orgulhosos com seus pelos de causar inveja. Alguns pretos, outros loiros, outros ruivos, dependendo da genética, mas todos rigorosamente debaixo do braço. A situação só piorava nas aulas de educação física, quando montavam disputas (time com camisa versus time sem camisa) — sempre fui do com camisa — e dois ou três expunham até os pelos que lhes enfeitavam o abdome.

Antes de dormir, eu rezava para meus hormônios — cada um com sua crença. Rezava para que agissem rápido, que não ficassem preocupados apenas com as espinhas, pois essas eu nem queria. E assim sonhava, sonhava toda noite com cabelos de Rapunzel saindo de minhas axilas, formando tranças de dois metros que eu fazia questão de desfilar. Mas, quando acordava e ia para o banho, não encontrava nada ao erguer os braços. Procurava com fé, chegava bem pertinho do espelho, mas a única coisa parecida com pelo que, às vezes, aparecia era algum felpo de cobertor.

Minha obsessão por pelos nas axilas estava virando neurose e, para evitar problemas depressivos, me fiz entender que não era o único que passava por esse problema, que deviam existir outros garotos que tampouco tivessem axilas peludas. Então, comecei a reparar. Quando o garoto estava de camiseta regata, era fácil notar, mas quando havia mangas, era necessário improvisar uma estratégia: espiar dentro da roupa assim que ele esticasse um dos braços. Fiz isso com dezenas de colegas e procurei milhares de fotos na internet, mas sempre havia um pelinho ou dois para fazer chame.

Parei de investigar. A essa altura, já tinha feito 15 e só usava manga longa, além de recusar quaisquer convites à praia, à piscina ou outro lugar onde as axilas pudessem ficar à mostra. Sabia que, se uma pessoa me visse, logo comentaria: “Alá o carinha sem pelo no sovaco!”, por isso, nem por decreto, eu abria mão da blusa de frio. Podia estar o sol que estivesse que o moletom marcava presença.

Suava exageradamente, mas era essencial para manter o triste segredo. Para evitar o mau cheiro, abusava do desodorante e, num dia de troca de marca, uma coceira começou. Coçava de um lado; coçava do outro. “Maldito desodorante novo!” Coçar por cima da roupa parecia aumentar o desconforto. “Maldita alergia!”. Assim que pude finalmente chegar em casa, disparei ao banheiro e joguei tudo para o ar: boné, blusa de frio, camiseta de manga longa... As axilas precisavam das unhas, uma coçada de verdade, e o alívio logo surgiu.

O braço esquerdo levantado louvava a mão direita que lhe arranhava, e louvava a surpresa que o espelho traria em seguida: pelos. Pelos nas axilas! Conferi a outra e também estavam lá. Eram novos, eram finos, eram claros, mas eram pelos. Minha prece fora atendida.

Toquei e os alisei como se fizesse um cafuné axilar. Não via a hora de tirar a regata do armário, vesti-la e sair pela cidade, mostrando à metade da população que eu já era homem, que tinha axilas peludas, mas me contive. Certamente, haveria algum jovem louco que ficasse reparando na axila alheia em busca de alguém que compartilhasse sua dor, ou seja, um invejoso de pelos. Recoloquei a camiseta, recoloquei a blusa de frio, recoloquei o boné. Os meus pelos, ninguém cobiça.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Concurso de Papais Noéis



O Papai Noel resolveu fazer um concurso para eleger seu substituto. Já estava velhinho, o coitado, e por isso precisava encontrar alguém que estivesse apto para ocupar seu lugar.

Em pouco tempo, recebeu inscrições de papais noéis de todo o mundo. A maioria atendia ao seguinte físico: na faixa dos setenta anos, acima dos cem quilos, branco na pele e nos cabelos, barba comprida.

A escolha parecia dificílima, mas o Papai Noel soube exatamente quem indicar para a semifinal e classificou os cinco que estavam no grupo menor.

O número um era negro. O número dois, loiro. O número três, japonês. O número quatro, índio. E o número cinco, uma mulher. Cada um com tamanhos, pesos e idades diferentes.

Para não ser injusto, o Papai Noel não quis tomar a decisão final e decidiu fazer uma eleição entre suas renas para uma parecer final.

As renas perceberam que os cinco tinham perfeitas condições de assumir o posto, portanto usaram a magia natalina para empatar a eleição.

O resultado foi que, para cada continente, ficou eleito um papai noel: o negro africano; o loiro europeu; o japonês asiático; o índio americano; e a mulher oceânica.

No início, as pessoas estranharam tais características nos papais noéis, mas logo entenderam a mensagem do Papai Noel: no Natal, não há diferenças étnicas, etárias, sexistas ou estéticas. Todos devem se unir para celebrar o amor entre os humanos.

CURIOSIDADE: O vocábulo “Papai Noel” (com iniciais maiúsculas e no singular) é o nome do ente imaginário que vive no Polo Norte e entrega presentes na noite de Natal. Já “papai noel” (com iniciais minúsculas e podendo ser pluralizado para “papais noéis”) é cada uma das pessoas que se veste como o bom velhinho na temporada de Natal.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Cartas de Tati Bitate IV - A Hitler



Barriga da minha mãe, 28 de junho de 1999.

Senhor Hitler:

Já ouvi falar muito de você. De fato, ainda não tenho acesso às coisas terrenas, mas posso garantir que sei de muita coisa e conheço muita gente, por meio das milhares de informações que recebo pelo cordão umbilical.

Sou um feto de oito meses e estava tudo muito tranquilo até agora. Meu nascimento está previamente agendado para o mês que vem, mas confesso que sinto muito medo. Não medo da vida, e sim da morte.

Durante toda minha gestação, minha mãe acompanhou suas façanhas de aniquilação de negros, exílio de judeus, destruição de todos aqueles que não fossem da sua raça e não seguissem seus mandamentos.

Até este momento, porém, toda a tirania realizada por você não me atingiu, visto que moro no Brasil e seus massacres se limitaram à região europeia. Agora é que fico preocupada, pois, no telejornal que minha mãe assistia ontem à noite, revelaram suspeitas de que você está morando na Argentina, que é pertinho de onde eu moro.

Quando captei essa notícia no umbigo, tive uma hipotermia. Se já tivesse cabelo, teria perdido vários; se já tivesse dentes, os teria rangido. Mesmo assim, tentei não entrar no desespero.

Desde que ainda era um embrião, tenho em mim que a melhor coisa é uma conversa, um diálogo, mas como é impossível de eu fazer isso com você, escrevo esta carta telepática, que mentalizo fortemente para chegar até seus neurônios.

Gostaria de dizer que não serei loira, nem terei olhos azuis, mas quero uma chance para viver. Peço para que me dê essa oportunidade de respirar o ar que há fora do útero e crescer quietinha no meu canto, sonhando em meu futuro quarto de menina.

Sei que no fundo de toda essa carranca bate um coração que é fã de crianças. Por isso, pense com carinho no meu pedido.


Saudações amnióticas do ainda feto,
♥♥♥ Tati Bitate ♥♥♥

sábado, 10 de dezembro de 2011

Cartas de Tati Bitate III - A Justin Bieber



No Meio do Anonimato, 21 de junho de 2011.

Para o Justin:

Faço esta carta sair do sul da América do Sul e voar até o norte da América do Norte apenas para dizer que, diferente de todas as meninas da minha idade, não sou uma belieber. Na verdade, até sou, mas no sentido real da palavra. Descarto a hipótese de ser uma fã endoidecida, mas assumo que sou alguém que acredita em seu trabalho.

Admito que considerava você só mais um garoto canadense que, embora gostasse de ser garoto e gostasse de ser canadense, não estava satisfeito em ser só mais um. Por isso, lutou pelo seu sonho adolescente e teve a sorte de ter sido descoberto e conseguiu reconhecimento pelo talento. Sendo assim, acabava me viciando nas suas músicas, mas não levava tão a sério a sua pessoa.

Você, no entanto, surpreendeu não só a mim como todas as pessoas que desprezavam ou eram indiferentes às suas ações, no fim do ano passado, quando lançou a música e o videoclipe Pray. Nesse vídeo, que arrebentou o recorde de visualizações, você mostrou ao mundo que está se dedicando a uma missão: a de levar alegria e conforto às crianças necessitadas da África.

O clipe, além de trazer uma mensagem muito bonita, de que devemos nos preocupar com nosso semelhante, ainda faz referências à religiosidade e mostra que a presença de uma rede de orações pode ajudar lugares afetados por desastres naturais, crianças doentes e pessoas sem moradia.

Infelizmente, há muitos críticos que dizem que tudo não passou de uma campanha para autopromoção, que você só está querendo se aparecer, que tenta imitar o Michael Jackson para ocupar seu posto de rei do pop. Ninguém é sincero a ponto de admitir que você somente está fazendo aquilo que está ao seu alcance.

Se realmente foi uma estratégia de marketing apenas para que você fique ainda mais comentado e destacado na mídia, isso eu não posso julgar. Acredito que somente você, em diálogo com a sua consciência, é capaz de refletir sobre tal fato. Porém, dou-lhe um voto de confiança, acredito que esteja se tornando um missionário de verdade e está incentivando outros adolescentes a fazerem o mesmo.

Por falar nisso, hoje é o início do verão no seu lado do planeta, mas, por aqui, começa o inverno. Nesses momentos, fico pensando no tanto de gente desabrigada que tem passado pelo frio desde o outono, que antecipou os ventos gelados.

Agora, minha mão esquerda passa a caneta por esse papel, enquanto o resto do meu corpo está embaixo de um edredom. Infelizmente, sei que muitas pessoas não têm o mesmo conforto e, por isso, eu rezo. Sigo seu conselho: I close my eyes, and pray. É o que está ao meu alcance.


Um beijinho bem demorado da sua belieber intelectual,
♥♥♥ Tati Bitate ♥♥♥

sábado, 3 de dezembro de 2011

Cartas de Tati Bitate II - A Ernesto Che Guevara



Sudeste brasileiro, 13 de junho de 2011.

Aos cuidados do senhor Ernesto Che Guevara:

¡Hola, Che!
(Sabia que, até ontem, eu pensava que você era gaúcho? É porque, no Rio Grande do Sul, todos falam num tal de tchê).

Hoje, o aniversário é do Fernando Pessoa, 123 anos revolucionando a poesia, e eu resolvi escrever para você, que há tanto tempo revolucionou tudo quanto é canto. Às vezes penso se é coincidência ou se isso aconteceu porque, na minha lista oculta de destinatários, o nome Guevara vem antes do Pessoa.

Ouvi seu nome já há algum tempo, mas não fazia ideia de quem você foi. Talvez não faça muita ideia ainda, já que tive contato apenas com um livro de História que fazia referência a você. Foi na manhã de ontem quando, entre uma aula de Português e outra de História, decidi ir à biblioteca da escola.

Cheguei lá e pedi logo de cara para a monitora: quero um livro de História Contemporânea, que aborde, entre outros fatos, a Revolução Brasileira de 1964. Não preciso nem dizer que a mulher quase caiu de costas e até me desprezou, dizendo que eu, com 11 anos e na 6ª série, era muito nova para esse tipo de leitura, que não leria nem metade do livro que havia lá, que não entendia esse meu desejo insólito de querer um livro do tipo.

Veja se não é um desleixo dela esse tipo de atitude. Será que ela não sabe que eu assisto novelas? Pois, aqui no Brasil, está sendo exibida uma que se passa no período ditatorial. Tem algumas cenas fortes, mas uma história de amor linda no fundo. Acho que isso é a tal da coisa chamada antítese, que a professora Graziele falou na semana passada e eu achei que fosse algum tipo de remédio para gripe.

No fim das contas, sob acusações e desconfianças, consegui retirar o livro. Era um livro grosso, tipo aquele descrito pela Clarice Lispector no seu conto Felicidade Clandestina. Eu fui com sede para lê-lo e, assim, abri a primeira página.

A mulher da biblioteca tinha toda razão: ô livro chato! Com um palavreado todo culto e científico, nada a ver com literatura, ele começa com uma introdução aborrecedora sobre algo que até agora não sei o que é. Para mim, as palavras não tiveram nenhum nexo.

Fiquei pensando como é que pode um livro parecer tão interessante e, na hora de ler, ser um porre. Talvez seja esse negócio de antítese, que parece estar na moda.

O resultado foi que vi apenas as ilustrações e, num capítulo sobre Revolução Cubana, seu rostinho estava estampado. Com toda sinceridade, você realmente tem cara de revolucionário, desses que agita a maior galera para conseguir obter aquilo que lhe é de direito, ou para elaborar novos direitos.

Mas, pela rápida passada de olho que dei, você é um revolucionário do bem. Não é como o Hitler, que só gosta dos loiros, nem como Getúlio Vargas que, segundo a novela, fez o maior auê aqui no Brasil, impedindo as pessoas de expressarem suas opiniões e impondo que a vontade dele fosse realizada.

Você é do tipo Jesus Cristo, que uniu as pessoas para uma coisa boa para elas, que tentou derrotar a elite e lutou pelos mais fracos e sensíveis, que ouviu a voz do povo. Você foi o Salvador Cubano, e sua atitude refletiu aqui no Brasil, que hoje é uma democracia agradável (com algumas pequenas antíteses a serem consertadas).

Por isso, finalizo esta carta dizendo que, mesmo conhecendo pouco sobre você, você já está na minha lista de heróis.


Um beijinho cordial da sua jovem admiradora,
♥♥♥ Tati Bitate ♥♥♥

sábado, 26 de novembro de 2011

Cartas de Tati Bitate I - A Jorge Luis Borges



Escola Municipal Professora Helena Amaral, 06 de junho de 2011.

Caro senhor Jorge Luis Borges:

¡Buenos días!
(Vocês, argentinos, falam bom-dia no plural porque as cartas levam vários dias para chegar ou é para que os dias sejam bons desde o recebimento desta até a chegada da próxima carta?)

Escrevo de uma cidade pequena, no interior do Brasil, e tenho 11 anos, por isso estou na sexta série. Sei que é estranho uma pré-adolescente escrever para você assim, do nada, mas sabe o que é? É que a professora pediu para que escolhêssemos uma pessoa que admirássemos e que escrevêssemos uma carta com ela sendo o destinatário. Então, escolhi você.

Minha professora de português, a propósito, deve ser parenta sua. O nome dela é Graziele Maria Borges, ou seja, vocês têm o mesmo sobrenome. Se eu fosse você, dava uma olhadinha na árvore genealógica porque acho que seu tataravô também foi tataravô dela.

Quando contei que iria escrever a você, ela riu. Perguntou como é que eu iria remeter uma carta para alguém que já morreu, mas aí eu falei que, como você é mestre de literatura fantástica e na literatura fantástica tudo pode, ia dar um jeito de receber estes meus parágrafos, esteja no céu ou num outro lugar para onde vão os inventores de histórias.

Para começar, já peço desculpas por não escrever em castelhano. Acontece que, como eu ainda não tenho aulas de espanhol, não sei como falar sua língua. Aqui, a questão das aulas de espanhol nas escolas públicas já virou polêmica: todo ano dizem que vai ter, que é importante para o estudante brasileiro conhecer esse idioma, que é a língua oficial da América Latina e do Mercosul, mas as ideias nunca saem do papel. Sorte que isso, agora, não é problema porque, genial e poliglota como você é, pode muito bem me entender em português.

Dizem que sou muito nova para conhecer você, que ainda não tenho idade para ler o que deixou escrito aqui na terra. Só que eu gosto, né, fazer o quê? Ontem mesmo, eu estava lendo um poema seu: O Suicida. Lá falava que quando você morresse levaria junto a soma do intolerável universo. Sabe que eu acho que isso aconteceu de verdade?

Eu nasci bem depois da época que você morreu, mas meus avós e até meus pais viveram nesse passado. Eles não cansam de contar que o mundo, naquela época, sim, era maravilhoso, mas que agora está acabado. Tá vendo só? Suas palavras funcionaram, você estava certo! Depois que você morreu, o universo também abandonou sua vida, e hoje vegeta. Posso dizer que sou o tal ninguém a quem você comenta que deixaria o nada.

A gente, aqui da escola, já fez diversas campanhas e vive apresentando trabalhos sobre como salvar o mundo. Mas, como as aulas de espanhol, tudo não sai do papel. Infelizmente, quase ninguém leva a sério aquilo que planeja. Eu sou raridade. Dou o melhor de mim porque sei que um pinguinho de tinta hoje é uma obra artística amanhã. Ah, como queria me tornar uma pessoa tão importante para o mundo como você foi, fazendo com que as palavras, mesmo estando no papel, repercutissem de forma esplêndida, marcante e imortalizada... Quem sabe, um dia, chego lá?

Agora, vou ter que parar por aqui porque já cheguei ao limite de linhas que a professora pediu. Tentarei fazer com que esta carta chegue até você, seja por meio do correio fantástico ou da belíssima imaginação. O importante é não deixar que estas palavras morram no papel.


Um beijinho cordial da sua jovem leitora,
♥♥♥ Tati Bitate ♥♥♥

sábado, 19 de novembro de 2011

Os pombos de fita vermelha



O fazendeiro morava em um barraco de madeira, um lugarzinho tão apertado que até parecia uma casa de pombos. Ele era apenas um dentre tantos outros fazendeiros que residiam num lugar chamado Campos Gerais.

Só que ele não queria ser igual aos outros e, então, inventou algo para se destacar. Começou a usar uma meia vermelha amarrada na perna. Ela aquecia nos dias de frio e ainda protegia das pancadas na canela.

Em uma manhãzinha, ele dava o nó na meia quando ouviu um barulho esquisito no telhado. Decidiu olhar o que era e viu que, sobre sua casa de pombos, havia um casal de pombos.

Eram dois pombinhos brancos que se desviaram do bando. Estavam perdidos e ciscavam no telhado em busca de uma migalha de pão que também estivesse perdida.

O fazendeiro sentiu pena, subiu na escada e apanhou os pombinhos. Passou a mão pela pena, viu que era macia, de uma raça rara. Eram especiais e, por isso, ele os adotou como pombos de estimação.

Só que ele não queria que seus pombos fossem iguais aos outros e, então, amarrou uma fita vermelha na pata de cada um. Isso provou o velho provérbio de que “o animal é a cara do dono”.

Infelizmente, um dos pombos estava muito doente e quase nem abria mais o bico. Os olhinhos mostravam a dor. O fazendeiro tentou dar um remédio que tinha, mas o coitado não conseguiu se curar. O outro pombo ficou sozinho.

Foi uma notícia muito triste, mas uma novidade boa estava chegando. Miguel da Rocha Carvalhaes, proprietário geral dos campos, havia decidido doar parte das terras aos fazendeiros para que eles formassem um novo povoado.

Os fazendeiros não perderam tempo e se reuniram para discutir qual seria o ponto de partida, o centro da povoação. Ali, construiriam uma Igreja em homenagem a Sant’Ana, padroeira de todos aqueles homens e suas famílias.

— Um pouco mais à esquerda.

— Um pouco mais à direita.

— Não, não... Tem que ser aqui mesmo.

O fazendeiro da meia vermelha queria ajudar, mas não sabia como. Olhava para seu pombo que parecia chorar pela morte do amigo. Entendeu que sensibilidade de bicho é maior do que intuição humana.

Então, começou a rezar para que Sant’Ana lhe deixasse tão sensível como um pombo. Dessa forma, saberia o lugar exato para que a Igreja fosse construída. Rezou com tanta fé que, por um passe de mágica, se transformou em pombo.

Um pombinho branco, com pena macia e de raça rara. Na perna, a meia vermelha havia se transformado em fita. Fez amizade com o outro pombo e decidiu que queria permanecer pombo para sempre.

Os dois arrulharam para Sant’Ana em agradecimento e voaram até o alto de uma colina, atraídos por uma enorme figueira de frutos suculentos, e pousaram sobre uma cruz vizinha que tinha as extremidades mais amplas.

— A Igreja deverá ser construída naquela cruz de ponta grossa!

Dessa forma, construiu-se a Igreja de Sant’Ana. Abençoada pela santa, a população passou a habitar ao redor da igreja. E a Ponta Grossa da cruz batizou a nova região.

sábado, 12 de novembro de 2011

O Sequestro do Coelhinho da Páscoa



A Páscoa era o feriado mais ovacionado pelas pessoas. Todos aplaudiam de pé quando o Coelhinho aparecia, pulando, com sua cestinha recheada de chocolates. Chocolate ao leite, chocolate branco, chocolate com amêndoas, tantos eram os tipos que a língua se afogava em saliva só de imaginar.

Era Sexta-Feira da Paixão quando um telegrama anônimo passou por baixo da porta de Rafaell, o detetive de óculos triangulares. O bilhete era aterrorizante e dizia o seguinte: “Sequestramos o Coelhinho! Ligue para 0800-777-PÁSCOA e obtenha mais informações.”

Rafaell, o detetive de óculos triangulares, se desesperou. Sem Coelhinho, sem ovos, sem Páscoa. Pensou em pagar o resgate, mas, além de não ter dinheiro, nem sabia qual era o valor do resgate. Sua única opção era telefonar para o número informado.

No terceiro toque, uma gravação atendeu: “O Coelhinho continua em cativeiro. Corra até a aldeia indígena mais próxima e obtenha mais informações.”

No mesmo instante, Rafaell, o detetive de óculos triangulares, saiu em uma correria tão grande que quase perdeu um L do nome. Entrando na aldeia, encontrou com a filha do cacique, que dançava ao som de um samba indígena. A conversa entre os dois pareceu uma peça teatral.

RAFAELL: O que é que você está fazendo?

ÍNDIA: Índia Raio-de-Sol ensaiar carnaval.

RAFAELL: Carnaval nesta época do ano?

ÍNDIA: Pra índio, tudo motivo de festa.

RAFAELL: Índio também tem escola de samba?

ÍNDIA: Sim, Índia Raio-de-Sol ser Tacape de Ouro. Mas sempre perder pra Cocar Verde e Cachimbo da Fiel.

RAFAELL: E o que tanto vocês dançam?

ÍNDIA: Samba da Paz, Conga da Tanga e Funk da Taba Protegida. Agora, ensaiar Swing Oca-Oca.

RAFAELL: E você não tem nenhuma dança que faça coelhos sequestrados se libertarem?

ÍNDIA: Hum... Ter a Dança da Fugidinha... Mas ela ser perigosa.

RAFAELL: Perigosa como?

ÍNDIA: Ter efeitos colaterais.

RAFAELL: Que tipo de efeitos colaterais?

ÍNDIA: Se você soltar um coelho, você comer muito chocolate, você engordar, você ter espinhas, você esquecer até que Páscoa ser muito mais do que ovos.

RAFAELL: Eu topar! Digo, eu topo! O que mais quero é salvar o espírito pascoal, mesmo que isso seja arriscado.

ÍNDIA: Então, vamos brincar de índio.

Índia Raio-de-Sol e Rafaell, o detetive de óculos triangulares, dançaram, rebolaram, saltitaram e se descabelaram, mas aquilo não estava funcionando. Foi então que ele reparou na lança que Raio-de-Sol tinha nas mãos.

Não era uma lança de madeira comum, e sim de cenoura. E, na cenoura, estava escrito em letras bem pequenininhas: “Prendemos o Coelhinho no porta-malas. Ele ficará no carro até que a Páscoa acabe.”

Rafaell, o detetive de óculos triangulares, voltou para casa se sentindo péssimo por ter fracassado. Havia tantos carros no mundo que jamais encontraria onde o Coelhinho estava escondido.

A Sexta-Feira Santa passou, o Sábado de Aleluia também, mas quando chegou o Domingo de Páscoa, Rafaell, o detetive de óculos triangulares, entendeu a charada. Se havia carros que mereciam destaque naquela semana, com certeza eram os carros alegóricos do carnaval dos índios.

Dessa vez, saiu ainda mais rápido de sua casa, tanto que perdeu metade do nome. Chegou à aldeia sendo apenas Rafa, mas era tarde: o carnaval já havia começado e os carros estavam na avenida.

Rafa, o dete de ócu triang, não desistiu e se enfiou no meio do desfile. Bateu em plumas, se atrapalhou nas fantasias e quase caiu sentado em uma rede que estava no caminho, mas não conseguia chegar perto dos carros alegóricos.

Mais uma vez, ele se sentia triste até uma pessoa vir consolá-lo.

— Papai Noel?!

A pessoa tirou a máscara de Papai Noel e revelou que era apenas a Índia Raio-de-Sol fantasiada. Ouviu o desabafo do seu amigo investigador e decidiu ajudar.

— Deixar comigo! Mim fazer a Sacolejada que Para Desfile e Revela Vilão.

A índia dançou, rebolou, saltitou e se descabelou, e desta vez tudo funcionou. O desfile parou, os carros estacionaram e as pessoas ficaram como estátuas. Apenas uma continuou se mexendo: o Coelhinho.

Vendo que ele era o alvo das atenções, correu para não ser desmascarado. Subiu, desceu, virou à esquerda, mas, como a aldeia era pequena e circular, ele ficou dando voltas até se cansar.

Rafaell, o detetive de óculos triangulares, já havia recuperado o fôlego e o nome e, agora, tentava entender porque é que o Coelhinho havia inventado o próprio sequestro. Raio-de-Sol, então, mostrou que o Coelhinho era somente uma fantasia.

Puxaram a máscara do falso Coelhinho e revelaram a face criminosa do sequestrador: era o Papai Noel, o verdadeiro.

— Mas... Por quê? — Ninguém entendia o motivo da maldade.

— O Natal sempre foi o feriado preferido das pessoas, até que esse Coelhinho apareceu e transformou a Páscoa em algo mais doce. Até me vesti de vermelho, a cor do amor, mas as pessoas ovacionavam a Páscoa e já não tinham a mesma empolgação para o Natal. Assim, decidi que, neste ano, não haveria chocolates na Páscoa e as pessoas seriam obrigadas a esperar pelo presente no Natal.

Enquanto o Papai Noel falava, o Coelhinho era libertado de um trenó-alegórico fantasiado de carro. E ele já chegou falando:

— Do que é que você está reclamando? Você é muito mais adorável do que eu.

— Está louco? Todos preferem um coelho bonitinho e fofinho a um velho gordo.

— O louco é você: todos gostam mais de um senhor bonzinho e amigável do que de um mamífero com anormalidade de botar ovos.

— Mas seus ovos são muito mais gostosos que meus presentes.

— Seus presentes é que são mais mimosos que meus ovos.

— Seus ovos adoçam a vida!

— E seus presentes duram toda a vida.

E a falação prosseguiu, até que Rafaell, o detetive de óculos triangulares, interrompeu a conversa com um comentário desconcertante.

— Vocês dois são tão bobos... Enquanto discutem qual é o feriado que as pessoas mais gostam, se é o Natal ou a Páscoa, todo mundo está curtindo mesmo é o Carnaval.

sábado, 5 de novembro de 2011

Loira de Quimono



— Google, Google meu, existe blog nesta rede com mais acessos do que o meu?

“Você quis dizer: Loira de Quimono”.

A rainha das postagens não acreditava que seu blog de variedade, EgípciaLúdica.com, estava perdendo, em número de cliques, para o LoiradeQuimono.net, a página virtual de uma blogueira amadora.

Possessa de ódio, ela mandou um e-mail para o hacker mais detonador que conhecia e o contratou para exterminar o blog rival da rede de computadores. Assim, o hacker faria, mas, após entrar em contato com os arquivos bem formatados da Loira de Quimono, não teve coragem e, em desespero, mandou um recado virtual privado para ela.

“Fuja antes que ela destrua o seu blog! Migre do Blogspot para o Wordpress e eu direi à Egípcia que fiz seu blog se reduzir a uma porção de dígitos binários sem sentido.”

Assim eles fizeram. O hacker enganou a Egípcia Lúdica, e a Loira de Quimono, sorrateiramente, hospedou sua página em uma inusitada e desconhecida comunidade virtual.

Nesse site de hospedagem, estavam também sete blogs que não haviam conquistado a simpatia dos internautas e, por esse motivo, foram sentenciados à desatualização: Porco-Espinho Voador; Peru Depenado; Hiena Banguela; Cavalo de Cinco Patas; Crocodilo de Vestido Azul; Lebre Esquelética; e Morsa Lilás Esverdeada.

Cada blog tinha uma temática: o Porco-Espinho Voador era sobre jogos virtuais; o Peru Depenado, sobre meio ambiente; o Hiena Banguela, de humor; o Cavalo de Cinco Patas, de notícias; o Crocodilo de Vestido Azul, moda; o Lebre Esquelética, culinária; e o Morsa Lilás Esverdeada era sobre arte.

A Loira de Quimono resolveu visitar as páginas e dedicar sua atenção a cada uma delas. Percebeu, logo no primeiro acesso, o motivo pelo qual os blogs não eram atraentes. O layout e o domínio podiam até ser bacanas, mas o conteúdo precisava ser inovado. Conversou, em um programa de mensagens instantâneas, com os sete administradores e apontou o que poderia ser melhorado.

O Porco-Espinho Voador estava sem novidades. Permitir o acesso a jogos que milhares de sites já permitem não era interessante. O blog precisava de jogos novos!

— Por que você mesmo não cria os jogos e disponibiliza para download?

— Como farei isso? É difícil ter tanta criatividade.

— Se você é bom com os softwares, as ideias principais você pode tirar de situações do dia a dia: um jogo em que os candidatos a cargos políticos precisem convencer seus eleitores, por exemplo, desenvolvendo projetos em uma cidade inventada.

O Peru Depenado só sabia criticar os maus tratos ao meio ambiente. Era experto em falar mal de quem joga sujeira no chão, não recicla o lixo, polui as águas... inclusive de quem faz isso sem ser intencionalmente.

— Já pensou em pegar mais leve em suas postagens?

— Quem emporcalha tudo tem que ser tratado como porcalhão, a chutes e pontapés.

— Não é bem assim. Talvez, se alguém conversasse com essas pessoas com jeitinho e mostrasse o que poderia ser feito, elas melhorassem. Em vez de você detonar uma pessoa que joga uma sacola plástica no rio, por que não apresenta as milhares de coisas que podem ser feitas reutilizando essa tal sacola?

O Hiena Banguela precisava diferenciar suas piadas. Sair da mesmice: portugueses, papagaios e pontinhos. Por isso, a Loira de Quimono sugeriu:

— O que é que o búlgaro respondeu quando o romeno pediu para que ele visse se a seta de seu carro estava funcionando?

— O quê?

— Funciona. Não funciona. Funciona. Não funciona. Funciona...

O Cavalo de Cinco Patas só tinha que ser menos realista, tentar fazer com que os outros pensem que ele é um unicórnio disfarçado, que camufla seu chifre em uma suposta quinta pata.

— A realidade, resumida e monopolizada, é sem graça. Incorpore magia nas suas notícias!

— Se são notícias, devem ser verdadeiras, e não mágicas.

— Mas é possível criar uma realidade encantada. Siga o exemplo das crônicas: a notícia é contada de forma rápida, sucinta, inteligente, bem humorada e ainda pode ser chamada de literatura.

O Crocodilo de Vestido Azul não aceitava a evolução e se sentia preso em gerações passadas. Bastava, porém, um empurrãozinho para que ele se adaptasse à atualidade.

— A moda dos anos 1980 é a que você mais gosta?

— É a mais correta, isso sim!

— Com essa sua certeza, você nem percebeu que essa moda está voltando, não é mesmo? Não tem notado as calças coloridas, as faixas no cabelo, a sobreposição... Em vez de impor um passado distante, você poderia começar a relacioná-lo com o presente.

O Lebre Esquelética era uma cópia de tudo o que a televisão e diversos sites já mostraram e continuam mostrando cotidianamente. Um notável CTRL+C e CTRL+V nas receitas de bolo de chocolate, risoto de camarão e mousse de maracujá.

— Que tal de você inovasse nos quitutes? Misturasse alface com chocolate, chuchu com doce de leite, abacate com hambúrguer...

— Isso é horrível!

— Você nunca experimentou. Como pode dizer que não gosta de uma coisa que nunca provou?

O Morsa Lilás Esverdeada era preconceituoso e se recusava a mostrar obras de pintores contemporâneos. Contentava-se com as reproduções de Da Vinci e Michelangelo.

— Você tem medo de aceitar a evolução da arte.

— Sou consciente. Jamais que um quadro cheio de rabiscos, como esses que se dizem de vanguarda, pode ser chamado de arte. Não dá para entender nada.

— Quem é que disse que a arte é para ser entendida? Arte é para ser sentida. Se os rabiscos despertam em você alguma emoção, ainda que seja a repugnância, você pode claramente classificá-la como uma obra-prima.

O bate-papo da Loira de Quimono com os demais foi o primeiro passo para uma reflexão sobre o que poderia ser feito. Assim, os sete blogueiros resolveram apostar nas dicas dela e os resultados foram surpreendentes. Os blogs se tornaram minas de ouro.

— Google, Google meu, existe blog nesta rede com mais acessos do que o meu? — a Egípcia Lúdica repetia sua pergunta e se surpreendeu quando uma lista de sete blogs até então desconhecidos liderou o TOP 10 de acessos da semana.

Sem entender o que acontecia, ela vasculhou um por um e achou algo em comum entre eles: agradecimentos pelos conselhos valiosos da Loira de Quimono.

Não deu outra. Revoltada, a Egípcia Lúdica se disfarçou de Árvore Caquética, criando um novo blog, alterando datas e inventando falsos comentários, tudo para parecer que o blog já existia há muito tempo.

Esperta e sigilosa, ela descobriu o novo endereço virtual da Loira de Quimono e, fazendo-se de boazinha, enviou um convite para compartilhar com ela um arquivo mp3, uma suposta sugestão de trilha sonora para o blog.

Sem desconfiar que o gentil usuário denominado de Árvore Caquética era, na verdade, a Egípcia Lúdica, a Loira de Quimono aceitou o convite e, ingenuamente, clicou no botão de execução. Executado, no entanto, foi o vírus cavalo de troia.

O blog Loira de Quimono foi cruelmente desativado e encaminhado para quarentena. Após um determinado tempo, o blog seria excluído eternamente da rede.

Os administradores dos outros sete blogs tentaram ajudar, fazendo limpeza e desfragmentação de disco, mas nada restaurava as atualizações da Loira de Quimono.

O blog Egípcia Lúdica recomeçava a bombar nos acessos. Sem concorrentes à altura, os cliques disparavam. Nisso, os pedidos de outros sites para divulgação dos links em banners e janelas pop-up aumentavam. Com o pensamento de que quanto mais, melhor, a Egípcia Lúdica aceitava mais e mais anúncios.

Enquanto isso, os sete blogs recém-ressuscitados expunham seu luto. Até que, sem que ninguém esperasse, um jovem chamado Norton apareceu caminhando pelos neurônios eletrônicos.

Ao ver a situação na qual a Loira de Quimono se encontrava, fatalmente pisoteada pelo cavalo de troia, ele sacou seu spray digital e, com uma borrifada, transformou o vírus em um aplicativo de zero byte.

Aos poucos, a Loira de Quimono foi recuperando seus arquivos e, agora protegida pelo valente Norton, não sofreu mais com ameaças do mal. Quanto à Egípcia Lúdica, enlouqueceu, perdida no monte de pop-up que ela mesma autorizou e que espantou todos os visitantes que ainda tinha.

sábado, 29 de outubro de 2011

América Latina



— Ó, painho! A burra tá puxando a carroça de feno.

“Não sou uma burra!” — revoltou-se em pensamento. — “Sou uma mula. M-U-L-A. Mula! E me chamo Fidumaégua.”

Para uma mula alagoana, cargueira e de crina eriçada, Fidumaégua pensava demais. Pensou até que a carroça estava muito pesada para ser puxada e, por isso, comeu um pouco do feno. Além de aliviar o peso, lhe daria mais energia para continuar com seu serviço.

O pouco do feno foi bem aceito pelo estômago, mas o intestino não foi tão receptivo. A barriga roncou esquisito e a mula começou a mancar.

“Valha-me Nossa Senhora, que, se mula suasse, já estaria em sopa.”

Fidumaégua tentou segurar até encontrar um banheiro, mas não havia nenhum por perto que fosse destinado a animais. Tentou segurar mais um pouco, só que a barriga se contorcia por dentro e não teve como evitar: precisou levantar o rabo ali mesmo, no meio da rua.

— Ó, painho! A burra tá fazendo burrice.

O painho olhou feio; o menino já estava. As pessoas que passavam por perto torciam o nariz por causa do cheiro. Diferente dos mosquitos, que se aproximavam para voar bem pertinho da burrice.

“Oxente que vão me transformar numa mula-sem-cabeça por conta desse acaso.”

A mula baixou a crina e foi para casa com a certeza de que chicote do painho lhe faria um aconchego indesejado no lombo. Entretanto, como a dor da humilhação que sentiu recebendo as torcidas de nariz por causa da torcida na barriga foi a mais doída, Fidumaégua fugiu.

Passou dias trotando a passos de mula e, como não tinha uma bússola, não sabia que estava indo ao oeste. Passou por um lago de piranhas vegetarianas, visitou um cemitério de urubus e fez amizade com uma árvore chamada Cássia dos Anjos e que era a mais velha da Floresta Amazônica. No desgaste de sua ferradura, leu numa placa que estava na Praça de Bogotá.

Levou um bruto susto quando percebeu que andou tanto que chegou à Colômbia. Mais três animais — um sapo, um cachorro e um leopardo-fêmea — chegavam, paravam, liam a mesma placa e se assustavam. Fidumaégua tentou fazer amizade, começando pelo sapo.

— Ei, Perereca Louca!

— Quem? Eu? Desculpe, mas sou um sapo surinamês de duas tonalidades, de pele cor de berinjela coberta por traços fluorescentes de cor púrpuro-azulada.

— Agora você provou pra mim que é uma Perereca Louca.

O cachorro, mesmo sem ser chamado, entrou na conversa e se apresentou afobado:

— Eu sou Simpelo, um cão pelado peruano!

— Pelo visto, acabou de nascer, não é mesmo, Carequinha?

— Não, já tenho seis anos... Como disse, sou um cão pelado peruano.
Fidumaégua já estava estática, então apenas continuou assim e, para não parecer esquisita, relinchou para o leopardo-fêmea.

— E você, Gata?

— Não mio para estranhos.

— Nem precisa falar mais nada. Tá ameaçada de extinção! Só pode...
Estava certa: a Gata era um leopardo raro, da espécie Leopardus guigna, mais conhecida como gato chileno, o menor felino selvagem americano.

— Bem, já que ninguém perguntou, vou me apresentar por conta própria: sou uma mula brasileira chamada Fidumaégua. Assim como vocês, não sou da Colômbia, mas vim parar aqui depois de ter fugido de casa. E vocês, como chegaram aqui?

— Minhas particularidades não são de seu interesse — o sapo disse.

— Não mio para estranhos — a Gata redisse.

— Eu soltei um pum! — Simpelo contou.
Foi um estouro. Todo mundo quis saber que história era aquela e ele, cheio de gás, fez questão de contar.

— Como vocês podem ver, não tenho pelos, então sinto muito frio. E, como vocês sabem, o frio causa prisão de ventre. Num dia de inverno, estava tremendo para tentar me esquentar e isso forçou a saída dos gases. De repente, pum!

Dessa forma, Carequinha, ou melhor, Simpelo foi desprezado pelos donos e pelos amigos da fazenda. Então, numa geada da manhã, fugiu ao norte, soltando puns, sem destino certo, até cruzar a fronteira entre o Peru e Colômbia.

— Querem saber, comigo não foi tão diferente — o sapo revelava. — Eu era um sapo de riacho até que um dia um pescador me encontrou, se encantou pela berinjeleza da minha pele e me levou com ele, colocando-me em um aquário. Lá tinha pedregulhos e areia, castelinhos artificiais e oxigenação, mas não tinha banheiro. E uma hora precisei fazer xixi.

Assim, a Perereca Louca, ou melhor, o sapo surinamês foi jogado no quintal, junto da água amarelada do aquário. Envergonhado e com o moral ferido, saltitou para o sul, saindo do Suriname e indo parar na Colômbia.

— Eu não mio para estranhos... — a Gata dizia. — Não mio porque, da última vez que fiz isso, vomitei uma bola de pelos. Eu era um leopardo de família, vivendo em um centro de preservação de meio ambiente, no qual também não havia banheiros para animais. Quando senti vontade de vomitar, não tive para onde correr e a bola de pelos saiu ali mesmo, na frente de todos.

Ninguém mais parava para admirar a beleza da gata chilena e ainda controlavam sua alimentação para que ela não vomitasse novamente. Incomodada com o acontecimento, a Gata usou sua agilidade e foi aos pulinhos e elegância inflamada do Chile à Colômbia.

A mula Fidumaégua também contou sua traumatizante história e, então, destinou-os uma missão.

— Gente, que coisa mais porreta! Nada acontece por acaso, então, se nos encontramos aqui, na Praça de Bogotá, com histórias semelhantes, deveríamos impedir que outros animais também se sintam constrangidos e lutar pelo mesmo objetivo: a instalação de latrinas para animais!

— Latrina? — surpreenderam-se. — O que é isso?

— É a forma como gente chique feito eu chama o banheiro.

Combinaram um esquema e deram início à campanha América Latrina: uma luta por banheiros públicos para animais. Eles tinham a intenção de comover os habitantes de Bogotá, depois do resto da Colômbia, depois da América inteira e, no fim de tudo, o mundo todo estaria unido pelo respeito à privacidade na hora das necessidades fisiológicas dos animais.

Começaram com o cartaz: Fidumaégua arrastou uma placa de madeira; o sapo surinamês pulou sobre ela, espalhando suas cores e formando desenhos; a Gata saltou sobre o muro mais alto com a placa na boca e o cachorro nas costas; e Simpelo tremeu em cima do muro, chacoalhando a placa para chamar atenção.

Uma pena que todo trabalho foi em vão. As pessoas não entendiam aquela placa e algumas mais ousadas ameaçavam a ligar para o abrigo de animais — “onde já se viu quatro animais soltos pela praça?”

Então tiveram a ideia de falar com alguma criança, já que elas são mais amáveis com os animais. Avistaram a menina perfeita, que parecia supercarinhosa. Só que havia um problema:

— Nós só falamos a língua dos animais... Alguém sabe falar algo em espanhol?

Rebolando o lombo, Fidumaégua deu um passo à frente.

— Você? Mas você é brasileira... Tem certeza que fala espanhol?

— Além de saber falar espanhol, ainda falo com sotaque nordestino! — então Fidumaégua se aproximou da menina. — Ió! Ió!

A menina saiu de perto e, quando foram questionar a mula, a justificativa foi:

— É que ainda só aprendi as vogais.

Já estavam, os quatro, desanimados, achando que sua ideia não daria certo, até que viram um menino. Era jovem, estava com roupa de garoto perdido e, em pé, de frente para um muro, fazia xixi.

— Vejam, galera! — a mula relinchou. — Ele não tem latrina em casa.

Concordaram que ele era o garoto certo para ajudar na campanha, porém não sabiam como chamá-lo para ajudá-los. Então, começaram a discutir:

— Arraste-o para cá, Fidumaégua!

— Pule na cabeça dele, Perereca Louca!

— Solte um pum e chame a atenção dele, Simpelo!

A barulheira da discussão era tanta que o menino escutou. Chegou perto e ficou curioso:

— Nunca vi bicho falar.

Os quatro ficaram em silêncio. Aparentemente, o menino conseguia se comunicar com os animais. 

— Todo bicho fala — explicaram. — E você deve ter o poder de falar com a gente.

— Mas eu nunca falei com nenhum bicho daqui antes.

— É que você deve ter o poder de falar apenas com animais estrangeiros, então seu dom é internacional!

O menino ficou abismado. Os animais ficaram abismados. Um padre que passava na rua e viu o garoto estranho que falava com os bichos também ficou abismado.

E o garoto começou a divulgar a campanha dos animais. Contava para todo mundo que passava pela praça e pedia que ajudasse.

As pessoas pensavam: “Que imaginação fértil tem esse carinha!” e, em homenagem a toda sua criatividade, foram colocadas caixinhas de areia nas ruas, foram plantadas moitas nos canteiros e foram distribuídos saquinhos para que os donos coletassem o cocô dos bichos. Os animais poderiam fazer suas necessidades, tranquilamente, sem serem humilhados.

A partir de então, as pessoas passaram a fazer xixi nas piscinas e em postes à beira da estrada.

— Elas também deveriam promover uma campanha América Latrina, não é mesmo, Fidumaégua?

sábado, 22 de outubro de 2011

Afrodite nos acuda!



— Afrodite, por que esse sentimentalismo todo?

— Porque, se eu estivesse pulando de alegria, seria a deusa da festa, e não do amor.

— E o que trouxe Vossa Divindade até aqui?

— Três mensageiros e um cavalo alado. Cá entre nós, ele é mais lento que uma égua prenha.

— Mas eu pergunto: qual é o motivo?

— Estou sofrendo do mal que criei: αγάπη [agápi̱]

— Ah, o amor...

— Na verdade, é αγάπη [agápi̱] mesmo, porque, quando criei, foi em grego.

— Seja como quiser. Quero mesmo é que você foque no problema.

— O problema é que as pessoas que têm tosse dizem que estão com bronquite, e as pessoas que têm dor na testa dizem que estão com sinusite.

— O que isso tem a ver?

— Que as pessoas apaixonadas já dizem estar com afrodite.  O amor deixou de ser um sentimento e passou a ser uma inflamação.

— Como você se sente com isso?

— Sofrível! Sofro com o sofrimento de quem sofre.

— Como isso tudo começou?

— É tudo culpa do meu álter-ego romano! O amor era visto como beleza, como preciosidade, até que meu lado Vênus estragou tudo.

— Explique melhor.

— Primeiro, Vênus quis ser planeta para inspirar os namorados. Então, eles passaram a viver fora de órbita, sonhando com um amor platônico. Depois, Vênus tentou consertar e se fez de camisa. Aí, os namorados esqueceram completamente as emoções e priorizaram o amor carnal.

— Na sua opinião, as pessoas ficam desconfortáveis com isso?

— Para se ter uma ideia, na Ilha de Milo, quebraram os dois braços de Vênus.

— Você nunca tentou arrumar isso?

— Meu álter-ego afro-americano já! Só que Oxum conseguiu deixar tudo pior.

— Pior como?

— Como Oxum sempre esbanjou riqueza e prosperidade, o amor virou mercado. Foi um tal de gente se amigando por causa do dinheiro... Por falar nisso, a cotação do amor já subiu 8,56% desde ontem.

— Não teve outra forma de reparo?

— Pior que teve! Foi a vez do meu álter-ego egípcio interferir. E a Ísis resolveu jogar um pouco de magia nas pessoas... Pronto!

— Tudo se resolveu?

— E o amor é como matemática para ter resolução? Só aumentou a confusão! Todo mundo se sentiu superpoderoso, mago, e resolveram fazer simpatias de tudo quanto é tipo para conquistar o próximo. Só que, muitas vezes, o final era frustrante, pois o próximo, geralmente, estava longe demais.

— Você não vê outra maneira de tentar ajeitar isso?

— Já pensei em pedir para o Cupido flechar todo mundo, mas acho que isso aumentaria a zona. Já pensei em pedir para Marte explodir algumas bombas e exterminar o universo, mas isso seria radical demais. Pensei até em cometer suicídio, mas o que será do mundo se o amor se acabar? Preciso que você me ajude, doutor!

— Infelizmente, não posso.

— Pode, pode, sim.

— Não posso, não.

— Por que não?

— Porque estou com afrodite... por você!

sábado, 15 de outubro de 2011

Idade da Loba



— Bom dia, doutor. Em primeiro lugar, eu quero dizer que eu não estou louca nem sofro de distúrbios psicológicos. Por que vim fazer terapia, então? Porque tem um probleminha acontecendo comigo e o médico disse que não poderia fazer nada a respeito. Mas eu já aviso, de antemão, que não é coisa inventada, não! Não é porque a menstruação parou de descer que a maluquice me subiu à cabeça. Eu bem que gostaria que fosse ilusão minha, uma miragem, um sonho, nada mais. A verdade, doutor... A verdade é que tenho dupla personalidade. Como assim reconhecer isso já é um grande passo? O que você quis dizer com “grande passo”? Tá dizendo que meu pé é grande? Quer insinuar que sou sapatão? Ai, me desculpe. Eu não sou assim, agressiva, sabe? É meu outro lado que faz com que eu fique assim. É, doutor, há uma loba dentro de mim.

... Eu nunca tinha me atentado aos fatos, mas já sustento uma parte voraz desde a infância. Quando eu era criança, tinha a agilidade da loba. Pegava doces escondidos no bar da esquina e corria feito louca. O dono do bar nunca me pegou. Quando eu era adolescente, tinha a audição aguda da loba. Era nota dez no quesito ouvir fofocas... ou melhor, compartilhar informações alheias. Agora que sou mulher formada, tenho a ousadia da loba. Sempre que vejo uma presa, pulo em cima, agarro, começo a morder e auuu!

... O que você me recomenda, doutor? Agora, sou loira, magra, na casa dos quarenta e sem saber como sair dessa situação. Eu sei que não adianta eu me esconder, mas o que é que eu posso fazer para expor essa minha verdade às pessoas sem assustar todo mundo? Quê? Gravar uma música e um videoclipe, falando sobre uma loba que está no armário e tem vontade de sair? Faça-me o favor, doutor! Tô começando a pensar que nem doutor você é, que é apenas um especialista e olhe lá. Cadê seu diploma de Mestrado e de Doutorado? Ah, vá enganar outro. Onde já se viu pagar o preço que está me cobrando para ouvir tamanho absurdo? Quando uma ideia dessas der certo, eu me torno a rainha da música da Copa do Mundo no ano seguinte. Passar bem!

sábado, 24 de setembro de 2011

Como reconhecer um judeu



— Guten Tag! Bom dia, aprendizes! Começa agora nossa primeira aula sobre como caçar judeus na Tessalônica. Como vocês sabem, estamos em território estrangeiro e, aqui na Grécia, os judeus recorrem até aos deuses do Olimpo para se livrarem dos campos de concentração. Temos que ser “mais esperto do que a gente já somos”. Precisamos ganhar medalha de ouro nessa Olimpíada, ainda que isso signifique protagonizar uma tragédia grega. E para nos ajudar nos exemplos, nada melhor do que um judeu de verdade. Que entre o judeu!

— Bom dia!

— Guten Tag!

— Saúde.

— Was?

— Seis!

— Stopp!

— A, B, C, D, E... Hum, letrinha complicada para brincar de stop.

— Nein!

— Esses loiros...

— Aprendizes, a primeira coisa a se fazer quando se encontrar com um judeu é confirmar se ele é realmente um judeu.

— Exato: confirmar.

— “E como faço isso?”, vocês devem estar pensando...

— É... Como faço isso?

— Todo judeu já passou por uma circuncisão, portanto, vocês devem mandá-lo baixar as calças. Judeu, abaixe as calças!

— Tô falando! Esses loiros...

— Estão vendo?! É judeu! Agora, vocês devem estar pensando: “Mas e se ele disser que operou da fimose?”

— É... E se eu disser que operei da fimose?

— É só chegar mais perto! É fácil de reconhecer pela cicatriz.

— Esses loiros... Sei não.

— Rá! É judeu! Mas vocês podem pensar: “E como reconhecer, se for uma mulher?”

— É... Como reconhecer, se for uma mulher?

— É só pedir para que o marido dela abaixe as calças. Se o marido for judeu, ela certamente é judia.

— Xi, envolve até o marido! Esses loiros...

— Mas, porém, entretanto, contudo, no entanto, todavia... A mulher pode ser solteira. Aí eu pergunto: como identificar?

— É... Como ident... Epa, peraí! A mulher tá solteira, dando sopa, e você vai se preocupar se ela é judia ou não? Esses loiros...

— Okay, okay!

— “Eu aumento, mas não invento!”

— Was?

— Se(is)... Tá, dessa vez, eu passo.

— Nein!

— Esses loiros...

— Agora que vocês já sabem como reconhecer um judeu, só resta levá-lo até o campo de concentração.

— Ah, vai ter partida de futebol? Nazistas versus judeus?

— Nein!

— Então é concentração tipo ioga?

— Nein!

— Ah, é concentração de substâncias química, né?

— Por acaso, eu estou falando grego?

— Deveria. Você está na Tessalônica.

— Ah, já basta! Genug! A aula acabou aqui.

— Ei, peraí... Quero mostrar para você que estou aprendendo alemão. Posso falar uma frase?

— Ande, diga!

— Ich liebe dich!

— Quê? “Eu amo você”? Ai, ai! Esses judeus...

sábado, 17 de setembro de 2011

A Mina Taurus



— Bom dia! Posso entrar?

— Claro! Todos aqui são muito bem vindos.

— Então...

— Em que posso ajudar?

— Nada, não. Acho melhor eu ir.

— Tudo bem. Vá.

— Esse não é o momento em que você me diz: “Imagine, garota. Se você veio até aqui, é porque precisa de alguma ajuda. E estou aqui para isso. Volte, sente-se e se abra comigo. Garanto que lhe fará bem.”?

— Não. Sou apenas atendente de uma agência de encontros. Não tenho diploma de psicologia.

— Está bem, eu volto. Sei que você quer isso.

— Nome?

— Melina.

— Idade?

— 23.

— Signo?

— Touro.

— O que procura?

— Nada, não. Acho melhor eu ir.

— Tudo bem. Vá.

— Você não pode ser mais compassiva, não?

— Meu trabalho é preencher uma ficha com seus dados e encontrar uma pessoa com gostos semelhantes. Não preciso ser compassiva.

— Ai...

— O que procura?

— A saída.

— Que saída?

— Do labirinto.

— Seja mais específica.

— Do labirinto do amor! Estou presa nele há um bom tempo, como se tivesse sido enfeitiçada. E espanto todos que têm coragem de vir até mim.

— Por que isso acontece?

— Meio que o egoísmo, o apego e a avareza prosperam nesses momentos. Dizem que é coisa do signo. Daí meu apelido: Mina Taurus.

— Tudo bem, mas, afinal, o que você procura?

— Acho que alguém que me compreenda, porque meu último namorado estava indo bem, até que fez uma curva sem caída. Ele comprou o melhor presente de Dia dos Namorados que alguém é capaz de inventar, reservou o melhor restaurante, o melhor motel... Mas, quando eu lhe disse que meu presente para ela era minha presença, íntima e gratuita, ele decidiu terminar. Disse que sou avarenta. Só que, como eu disse, a culpa é do signo de Touro.

— Bom...

— Ah, e teve meu namorado anterior a esse, que errou o caminho no meio do labirinto. Quando começamos a namorar, ele prometeu ser fiel e estar ao meu lado em todos os momentos da minha vida. Eu levei isso um pouco a sério, então, quando ele não podia estar perto de mim, eu ia pra perto dele. Fazia questão de estar na cabeceira da sua cama sempre que ele acordava e de aparecer atrás do balcão, sempre que ele saía para beber. Depois de um jogo de futebol dele, quando eu entrei no vestiário para ficar do lado dele, ele quis terminar. Disse que sou muito apegada. Porém, não é minha culpa; é do signo de Touro.

— Sabe...

— Não posso me esquecer do meu primeiro namorado! Esse conseguiu sair pelo mesmo lugar que entrou. Caiu fora logo que achou que já tínhamos intimidade e quis me levar para a cama. Mas, da mesma forma que não compartilho celular, notebook, nem brilho labial, não ia oferecer meu corpo a ele. Estava feliz com minha genitália sendo tocada apenas por mim. Não queria compartilhá-la. Então, ele me chamou de egoísta e desistiu de mim. Mais uma vez, culpa do signo de Touro!

— Hum...

— E então, o que me diz?

— Tenho a pessoa ideal para você.

— Sério? Ele é loiro, alto, atlético?

— O nome dele é Homero e tem 62 anos. Este é o endereço. É o melhor psiquiatra que eu conheço. Só ele é capaz de matar o seu minotauro.

sábado, 3 de setembro de 2011

A Morte do Pavão


Um pavão velho com somente quatro penas estava sentado no meio de uma campina quando um urubu apareceu para rodeá-lo. O pavão olhou o urubu com desprezo.

— Posso saber o que é que você quer sobrevoando aqui?

— Tô com a maior larica, tiozinho. E como senti cheiro de carne podre a caminho, vim dar uma olhada.

— Pois eu não vejo ninguém à beira da morte, por perto.

— Essa sua força de vontade, eu admiro.

— Desculpe, mas não sei do que é que você está falando.

— Qual é, pavelho? Veja só pra você: só tem quatro penas. Sua carne já está com passaporte comprado pra minha pança.

— Se for depender da minha morte para conseguir alimento, esteja certo de que é você quem morrerá... de fome.

Então, uma das penas do pavão se soltou.

— Rá! Foi só falar, acabou de perder uma pena. Mais três, e cê vai pro beleléu.

— Não perdi nada. Esta pena, só tirei de mim para anotar as besteiras que você fala.

O pavão pegou a pena e rabiscou na terra. Enquanto isso, outra pena se soltou.

— Rá! Outra pena. Vai dizer que também tirou ela porque quis ou vai logo assumir que tá uma ave gagá?

— Gagás devem ser suas ideias. É óbvio que esta pena eu tirei porque preciso fazer um miniespanador. Não vê como este chão está cheio de poeira?

O pavão pegou a segunda pena e limpou um pedacinho do chão. Enquanto isso, a terceira pena se soltou.

— Xi... Seu papo furado não tá adiantando nada. Outra pena acabou de cair.

— Pois esta é para ver se diminuo seu baixo astral, lhe fazendo cosquinha.

O pavão tentou, sem muito sucesso, alcançar o urubu para lhe fazer cócegas com a pena. Nisso, a última pena se soltou.

— Agora, com a queda da sua última pena, cê aceita que tá morrendo?

— Que nada! Deste jeito, depenado, estou como uma ave que acabou de sair do ovo. Na certa, estou renascendo.

O pavão se levantou devagar e, a passos caquéticos, foi para bem longe do urubu.

sábado, 27 de agosto de 2011

Galinha de Angola

Baseado em uma lenda africana


Na Angola, muitos séculos atrás, nasceu uma galinha toda preta e sem crista. Seu nome era Kererê. Todas as outras galinhas tiravam o maior sarro da coitada e não deixavam que ela comesse as mesmas minhocas. Por isso, ela foi ficando fraquinha e resolveu fugir. Quando avistou um riacho, sentou-se e bebericou um pouco da água, lamentando.

— Tô fraco, tô fraco, tô fraco...

A rainha do riacho, ouvindo seu lamento, resolveu aparecer para ver o que acontecia.

— Por que é que você está tão triste?

— Eu sou uma, eu sou uma galinha / E me chamo, e me chamo Kererê / Eu fugi, eu fugi do meu bando / Pois sou feia, sou feia de morrer.

Kererê lhe contou tudo o que havia acontecido, de como as outras galinhas foram más com ela. A rainha do riacho ficou com dó da pobre galinha e deu-lhe os seus brincos.

— Tome! Use estes brincos vermelhos que tenho certeza que todos vão reparar em você e começarão a respeitá-la.

Kererê colocou os brincos e voltou toda contente para a cidade onde as galinhas viviam. Mas elas continuaram sendo más, diziam que o brinco era bonito demais para uma ave tão feia. Por isso, Kererê fugiu de novo, mais triste e mais fraca do que a primeira vez.

— Tô fraco, tô fraco, tô fraco...

A rainha do riacho resolveu ajudar mais uma vez e lhe deu seu casaco preto de bolinhas brancas.

— Tome! Vista esse casaco de bolinhas brancas que tenho certeza que todos vão sentir até inveja de você.

Kererê colocou o casaco e voltou ainda mais feliz para a cidade das galinhas. Só que, chegando lá, as galinhas a trataram mal mais uma vez, disseram que a feiura dela estava estragando a beleza da vestimenta. Por isso, Kererê fugiu outra vez, ainda mais deprimida e com fome.

— Tô fraco, tô fraco, tô fraco...

A rainha do riacho, mais uma vez, quis ajudar a galinha, mas não tinha mais brincos ou casacos para lhe dar de presente. Então, ela tirou sua coroa.

— Tome! Agora, esta coroa é sua. Coloque no lugar da sua crista e garanto que as outras galinhas vão lamentar por não terem uma igual.

Assim, a rainha do riacho mergulhou para bem fundo, e Kererê voltou para sua cidade. Quando as galinhas a viram, a trataram como uma verdadeira rainha, lhe deram as minhocas mais gordas, os grãos de milho mais macios. Kererê ficou muito alegre e voltou ao riacho para agradecer a rainha. Como já era de costume, ela repetiu as palavras que sempre repetia para que ela aparecesse.

— Tô fraco, tô fraco, tô fraco...

A rainha do riacho não veio, e ela continuou.

— Tô fraco, tô fraco, tô fraco...

Mas a rainha do riacho não podia mais aparecer. Quando ela entregou a coroa à Kererê, perdeu seus poderes de rainha e desapareceu no meio das águas. Mas Kererê não sabia disso e, até hoje, repete suas palavras, na esperança de poder agradecer àquela bondosa mulher responsável por sua beleza.