sábado, 26 de março de 2011

Suicídio

Tanto a armação de dentes artificiais quanto a construção feita sobre um rio ou lago recebe o nome de ponte. Minha dentista já está acostumada a agir como uma arquiteta e colocar inúmeras dessas próteses odontológicas nas bocas dos pacientes. No entanto, não tenho a mínima noção sobre o assunto. Talvez fora por isso que resolvi subir no peitoril do segundo significado.

Com o vento batendo em minha face, subi na proteção construída ao redor da ponte e fiquei em pé. A população se aproximava, aos montes, na praça municipal, para ver o que o garoto de camiseta verde-exército iria fazer. Uns até arriscavam palpites:

— Acho que ele vai apresentar uma nova modalidade de mergulho...

— Deve ser uma campanha publicitária de algum novo produto; jogada de marketing!

— Aposto que ele vai anunciar sua candidatura a vereador!

Outros, porém, iam além e davam seus recadinhos:

— Seu louco, desça daí... A vida vale a pena ser vivida!

— Faça o que o seu coração manda, mas lembre-se: sempre há aqueles que te amam.

— Pula! Pula!

Inclusive, estavam presentes os mais ajuizados, que naquele momento misturavam bom senso com aflição e gritavam aos berros:

— Chamem a polícia! Chamem os bombeiros!

Olhando o imenso lago sob meus pés, abri os braços, fazendo com que o sol formasse uma cruz no chão da ponte, com minha sombra. Nesse momento, pensava em me atirar, até que ouvi uma voz conhecida, de uma grande amiga:

— O que você está fazendo? Não cometa nenhuma besteira.

— Não é besteira nenhuma... É isso o que eu realmente quero! Não sou mais importante para este mundo; a garota pela qual estou apaixonado nem mesmo lembra que eu existo... Até mesmo as margaridas dizem que ela malmequer.

Jamais lhe diria que essa tal paixão era ela própria. Era preferível morrer do que receber uma rejeição.

Ao passo que eu falava, ela, tirando seu salto, subia no parapeito, onde se sentou. Tentei mostrar-me irado:

— Não se aproxime e nem tente me deter, senão eu me jogo!

— E você não ia se jogar de qualquer forma? Então, tanto faz minha presença aqui ou não.

Ela, de fato, tinha bons argumentos, que me calavam e desorientavam-me ainda mais.

— Estou decidido: vou me atirar e livrar-me de toda a dor!

— Ou seja, você vai duplicar a minha.

Por um segundo, fiquei imóvel, tomando cautela para não perder o equilíbrio, enquanto punha seus pensamentos em ordem. A maneira curta e grossa, mas terna e melindrosa, de falar de minha amiga, ainda que tropeçando nas palavras, fez uma lágrima rolar pelo meu rosto.

— Você poderia me ajudar a descer?

Esse pedido foi um alívio para todos: para a idosa, que abraçava seu gato, depositando nele todo seu afeto; para o mendigo que olhava admirado um menino, cuja vida era perfeita em relação a dele, quase cometer um ato que ele jamais teria coragem de fazer; e para a repórter que, em frente à câmera, registrava cada acontecimento, segundo a segundo.

No entanto, nada saiu como esperado. Uma pisada em falso e, sem querer, meu pé escorregou. O grito de susto da multidão se misturou com o de desespero da minha amada amiga. Tentei, de alguma forma, me segurar, mas era praticamente impossível. Tudo parecia estar liso. De repente, ouviu-se o barulho de um corpo se colidindo com a água.

O povão prendeu a respiração e arregalou os olhos; não podiam crer que assistiram a uma cena de suicídio — ou homicídio — de alguém tão jovem. Entretanto, bastou que eu levantasse a cabeça para tomar fôlego e ficasse em pé, para que vissem a água do raso lago bater em minha cintura.

— E, corta! — gritou a jornalista, que agora tinha uma nova matéria para exibir na sessão de “vídeo cacetadas”, matando-me de vergonha.

sábado, 19 de março de 2011

Anestesia


Estava de boca aberta. E não era por aquela que fazia meu queixo cair; era por outro doce. Um que com certeza deixou uma pequena parte sua num estreito intervalo entre dois molares — lugar onde nem a escova nem o fio dental alcançaram — e resultou numa enorme cárie. Na verdade, essa era apenas uma das cinco desintegrações contidas em meus dentes.

Numa última consulta que havia feito à dentista, há exatamente três dias, ela resolveu começar a tratar dessa tal cárie. Primeiro, anestesiou o local; em seguida, com um aparelhinho de barulho perturbante, abriu uma cavidade no dente, onde aplicou a tão famosa guta-percha, que muitos chamam de “massinha” ou algo do gênero.

— E então, doeu? — perguntou assim que tirou o sugador da minha boca.

— Não. Não senti absolutamente nada — menti.

— Ótimo! Eu coloquei uma pré-obturação. É temporária, mas deve aguentar por cerca de duas semanas — como é possível perceber, ela também mentiu.

Agora, após a queda da massinha, a doutora pôde enfim perceber que meu dente pedia desesperadamente a substância metálica, a fim de evitar que outros resíduos adentrassem a concavidade. E foi trazendo a imensa seringa na direção da minha boca, que ela aconselhou:

— Não vai doer nadinha — mentiu outra vez. — Mesmo assim, esqueça a seringa e pense em outra coisa.

Visando que a doutora não era nem um pouco animadora, tentei desviar meus pensamentos. Mas não sabia em que me concentrar... Nos pedreiros que construíam um novo prédio, que podia ser visto através da janela do consultório? Na chatice que seria a apresentação de balé de minha irmãzinha, logo mais a noite? Na nova música da minha banda preferida? Foi quando senti a forte picada da agulha, penetrando em minha gengiva, que imaginei um mestre de obras trajando um vestido de bailarina e dançando hip hop. É bem provável que eu tenha sido o primeiro paciente a rir, enquanto era anestesiado.

— Prontinho! — anunciou, após a utilização da pomada antibacteriana, da resina dentária e do laser secativo.

Meu maxilar agradeceu. O coitado não tinha mais forças para se manter aberto.

Já estava prestes a sair do consultório quando algo tremeu em meu bolso. Era meu celular anunciando a chegada de uma mensagem de texto da garota que eu amava, mas que nunca me dera bola.

Ao esbanjar um breve sorriso com o SMS, a dentista, também sorrindo, me cutucou:

— Alguém especial?

— Não. É apenas uma amiga. Nada mais.

Ficamos quites, de novo!

Com a sensação de boca inchada, o que é mais do que normal ao sair do consultório de um dentista, me despedia da secretária. Nisso, a um asfalto de distância, a menina que tomara conta do meu coração se despedia da manicura e da cabeleireira.

Assim que saí da clínica, ela saiu do salão de beleza. Ambos nos surpreendemos um com o outro. Cruzando a rua, ela veio em minha direção.

Sem dizer uma única palavra, aproximou seus lábios dos meus e deu-me um inesperado e ardente beijo.

No momento, não sabia se ela percebera o quão eu estava apaixonado e quis me dar uma chance, ou se ela sentia o mesmo por mim. Mas não interessava. A única vontade que eu tinha era aproveitar aquele instante, pois ele poderia não voltar a se repetir.

Em suma, tudo seria perfeito, se não fosse o fato de eu não sentir nem meus lábios, nem os dela, devido à anestesia.

sábado, 12 de março de 2011

Minhocas na Cabeça


A perspicácia do Verão foi calorosa. Na distribuição das estações, soube escolher o melhor período, obteve a sorte de trabalhar com a companhia do Sol e ganhou a oportunidade de receber o ano com um sorriso radiante de boas-vindas, bem como a de lhe dizer adeus com um ardente beijo de despedida. Pode, inclusive, se gabar por acolher os três maiores feriados, Natal, Ano Novo e Carnaval. Além de bancar o bonzinho com os jovens por ter abraçado, também, as férias escolares.

Às vezes, porém, o que deveria ser descanso acaba se resultando em tédio. Na chácara do avô, nada para fazer, ninguém com quem falar — nem as três filhas da empregada, de idades consecutivas aos doze anos dele, arriscavam conversa. Para se livrar do contrastante frio do desprezo, distanciou-se da casa e adentrou uma trilha abandonada, onde seguiu até encontrar um riacho.

A grama tão alta parecia estar de pé. Ele deitou o corpo sobre ela, as mãos se fizeram travesseiro, os olhos admiravam as nuvens que bailavam no cenário azul do céu. Coisa mais chata, mas servia para passar o tempo e se esquecer do desejo alucinado de chupar sorvete. A bermuda de poliéster e a camiseta sem mangas deixavam à mostra as pernas e os braços, que já carregavam os primeiros fios da puberdade. Passou quatro horas ali.

Percebeu ter encontrado algo mais que um lugar bonito: descobriu o aconchego. Sentia-se relaxado, a brisa morna fazendo-lhe cair no sono. As pálpebras pesavam, mas antes que elas se fechassem, a bexiga tornou-se um incômodo. A sensação de preguiça era muito boa, por isso cruzou as pernas e tentou enganar o organismo. Há coisas, no entanto, as quais não se adianta nem tentar; impedir a vontade da natureza é uma delas.

O banheiro mais próximo ficava longe, e o barulho da correnteza não contribuía muito para o autocontrole. Teve de tomar uma atitude tipicamente masculina: infiltrando-se entre arbustos e correndo para trás de uma árvore, fez do musgo mictório. Por fim, olhou para baixo — ficou cara a cara com uma minhoca.

Como ela era feia, pobrezinha... e aparentemente estava infeliz; pelo menos não sorria, se é que tinha algum dente para isso. O sol a deixava estorricada e sem forças, um caule de margarida exposto ao calor, completamente murcho. O garoto quis fazer alguma coisa com ela, embora não tivesse a mínima ideia do que pudesse ser feito. A minhoca era indiferente ao olhar do rapazinho.

O som de passos fez o garoto virar-se abruptamente; a minhoca apenas transpareceu um leve movimento. As filhas da empregada apareceram para tomar um banho de riacho. O verde circundava o lugar, e o garoto, espiando entre os vegetais, sentiu seu mundo colorir. Uma morena, uma loura e uma ruiva: sorvete de napolitano em forma humana.

Os olhos brilhantes baixaram e viram que a minhoca havia encontrado sombra e se reidratava aos poucos. Ele baixou a mão direita e a aproximou dela, numa tentativa de brincar — uma brincadeira da qual não sabia certamente quem sairia vencedor. Tomou entre os dedos algo mole e esquisito de segurar.

Voltou a observar entre as folhagens e se deparou com uma imagem nunca vista pessoalmente por ele antes: as camisetas não poderiam ser molhadas, por isso as garotas as tiravam. O garoto colocava um sorriso malandro na face. A minhoca se contorceu, espreguiçando-se, como se a sombra, a temperatura ou algum outro fator do momento fosse responsável por que ela se esticasse.

À beira do riacho, a loura e a morena usavam os delicados dedos para desfazer o nó dos cordões de seus shorts, enquanto a ruiva descia calmamente a saia. O garoto continuava a espreita e se divertia com a cena. Começou a balançar os dedos, uma massagem malfeita na minhoca. Ela, mesmo assim, demonstrava gostar e o recompensava fazendo pequenas cócegas.

Não sabia se ria ou se se segurava, se olhava para a isca de peixe ou para as três sereias. Sem perceber, a situação dos dois novos amigos se inverteu: a minhoca estava rígida, procurando algo para olhar, e ele se contorcia, sentindo uma estranha alegria interior nunca sentida antes.

Reposicionou os olhos a tempo de assistir ao desfecho da cena. As moças analisaram o ambiente e, sem notar a presença do neto do patrão, se desfizeram das roupas de baixo e pularam na água cristalina, refrescando seus corpos.

Uma inesperada e repentina chuva de fim de tarde escorreu de uma nuvem passageira. As garotas saíram espontaneamente do riacho e, vestindo-se rapidamente, voltaram para casa. O garoto permaneceu estático — as gotas do suor imprevisto que vazava da testa se misturaram com as gotas do suor vindo do céu. A minhoca, agora molhada, se encolheu na palma da mão. A mão estava pegajosa — celoma de anelídeo, talvez — e mostrava o poder que ela teria dali em diante.

Perspicaz foi o Verão. Merecedor de uma menção honrosa por representar uma época que é tida, por muitos, como a da descoberta da adolescência.