sábado, 30 de julho de 2011

A ginasta maluca


A semana se iniciava com o presidente da Meia Lua Calçados estressado com seus telefonemas de cobranças, reuniões e problemas pessoais. Até ele receber um telefonema que lhe interessou.

— Dona Carolina, venha já à minha sala! — falava contente ao telefone.

Assim que Carolina, uma funcionária na fase da aposentadoria, chegou, o presidente lhe deu um sorriso muito amigável e começou a tratá-la bem, oferecendo cafezinhos, biscoitos, canapés e chá preto. Aceitou os canapés.

Mal pegara a fatia de pão e o chefão a puxava pelo braço. A única coisa que ele pedia era para que ela o seguisse. Assim o fez. Eles iam pegar o elevador, mas, por motivos de manutenção, este estava desligado. Desceram, então, pela escada, os catorze andares — Carolina sendo puxada pelo braço, e o presidente descendo rapidamente os degraus.

A senhora já estava até sem fôlego quando chegaram ao térreo. Mas a corrida milionária não parou por aí. Percorreram todo o estacionamento até encontrarem o carro do presidente. Um carrão preto, de última geração, importado e com um bichinho de pelúcia pendurado no vidro. Era um carro magnífico.

Ordenou que Carolina entrasse no carro. Ela perguntou aonde eles iam, mas ele não quis responder, apenas insistiu para que entrasse. Ela chegara a ficar preocupada achando que seria vítima de sequestro, mas como ela era uma simples funcionária, tinha que obedecer quem estivesse acima de seu cargo. Assim sendo, entrou.

Assustada, Carolina colocou o cinto de segurança. Animado, seu patrão ligou o rádio, colocou um CD do Enrique Iglesias e saiu cantando. Carolina concluíra que era sequestro. Por isso, foi da empresa até o lugar de destino, rezando um terço que encontrara no bolso.

O automóvel saiu da Vila Virtude e andou mais quinze minutos até chegar ao bairro de Ares Limpos. Carolina estava conhecendo o outro lado da cidade, que nunca tinha visto pessoalmente. Ainda sem entender o que estavam fazendo lá, continuava rezando para evitar que alguma desgraça lhe acontecesse, até seu chefe finalmente parar o carro.

— Muito bem, Carolina. Agora, ao invés de ir até a Meia Lua, você pegará um táxi e virá para cá, todos os dias. Ah, o táxi é por nossa conta.

Ela olhou em volta e, achando que sua vista não estava muito boa, indagou:

— Essa é uma casa de cultura. A Meia Lua agora vai trabalhar fazendo sapatilhas de balé?

— Não, sua boba. A Meia Lua não fará nada. É você que fará algo para a Meia Lua.

Como Carolina havia dito que ainda não tinha conseguido compreender o que ela faria ali, o chefe continuou:

— Hoje recebi um telefonema informando que, dentro de seis meses, haverá um concurso na cidade. Todas as empresas poderão participar com um funcionário, e você foi a escolhida.

— E que tipo de concurso é esse? E o que tem a ver com a casa de cultura?

— É uma competição de ginástica artística e você será nossa ginasta. Agora, entre que você está atrasada para o treino.

No começo, Carolina achou que fosse algum tipo de brincadeira ou pegadinha, mas viu que o negócio estava ficando sério quando seu chefe saiu, deixando-a na porta da casa de cultura e uma treinadora de ginástica artística veio lhe dar boas vindas.

Antes mesmo que ela começasse a treinar, sabia que tinha caído do cavalo.

sábado, 23 de julho de 2011

Cegos


A nova mamãe do pedaço não podia nem imaginar que aquele dia seria um dos piores de sua vida. Não por ser véspera de Natal e o comércio estar supostamente lotado, nem por que passaria mal. Seria um dia ruim, pois ela jamais teria coragem de voltar àquela loja de calçados.

Esperava encontrar, no centro da cidade, um formigueiro de pessoas correndo para lá e para cá, no maior empurra-empurra, desesperadas por uma liquidação numa loja ou por uma promoção em outra. Expectativa frustrada!

As ruas estavam tão vazias como o velho Texas em dia de tiroteio. Ela tivera sorte, porque não precisaria sofrer no meio da multidão nem furar filas utilizando sua filha como objeto para atendimento preferencial.

Sossegada, passava, empurrando o carrinho pelas ruas da cidade grande, cumprimentando os gatos pingados que passavam por ali, hora ou outra encontrava um conhecido. Ao passar em frente à loja de calçados mais famosa da cidade, ficou de boca aberta, olhando a vitrina.

Calçados de todos os tipos: tênis, sapatos, sandálias, chinelos; de todos os tamanhos: do RN ao 52; de todos os materiais: camurça, couro, plástico; e, também, de todas as cores: preto, branco, cinza, marrom, estampado... Era um paraíso para os pés.

Ela não podia ficar sem comprar calçados para si e, por isso, correu em direção à entrada. “Cuidado!”, tentou avisar o vendedor que estava lá dentro. Mas era tarde. Batera a cabeça na porta de vidro.

Após se recuperar da cacetada, resolveu empurrar a porta para abri-la, já que percebeu não ter superpoderes. Finalmente conseguiu entrar. O vendedor começou a lhe mostrar os calçados dos mais simples aos mais sofisticados. Enquanto ela provava milhares, o carrinho do bebê ficou no meio da passagem.

Um outro cliente entrava na loja: um deficiente visual de uma cinquenta anos. Para que pudesse andar pela loja, foi tateando o chão com a bengala, sem perceber que o pedaço de madeira havia se encaixado na rodinha do carrinho da criança.

A moça, fechando negócio com o vendedor, pegou o carrinho para ir até o caixa, a fim de pagar a mercadoria que estava comprando, porém não sabia que a única coisa que pagaria seria o maior mico.

Empurrando o carrinho, não percebeu que o pobre cego estava preso ali. O cego, não querendo soltar a bengala, foi arrastado junto até o caixa. Quando ela, enfim, parou e olhou para trás, viu o homem desencaixando seu bastão, com o qual lhe daria uma bengalada.

Naquele momento, apareceram pessoas de todos os cantos para rir da moça que massageava o segundo galo da sua cabeça.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Uma gatinha


Estava sentado à espera do chamado da professora, para que entrasse à aula. Não havia prestado atenção se havia algo ou alguém debaixo do assento.

Assim como todas as segundas-feiras, no início da noite, por volta das sete horas, havia ido ao cursinho de inglês, a fim de aprimorar minha sabedoria e expandir meus conhecimentos sobre o idioma.

A escola de línguas era pequena: uma sala principal, com cadeiras confortáveis e alguns jogos sobre a mesinha central; um cômodo com poucos computadores conectados à internet, para uso dos alunos; um banheiro comum; um corredor comum; quatro salas de aula comuns.

Cheguei um pouco antes da hora. Faltava, ainda, cinco minutos para meu horário. Aguardando, sentei-me em uma das cadeiras e abri meu livro de inglês para fazer uma revisão da matéria. Fui interrompido no meio dos estudos.

Em meados de meus quinze anos, não havia namorado, nem sequer saído, com uma garota. Mas não foi nisso que pensei naquele momento, nem ao menos tive tempo para pensar. Uma sensação estranha começou a surgir no meio de minhas pernas. Não sabia ao certo o que era aquilo, mas parecia que havia alguém tentando passar por entre elas. E realmente havia.

Com seus olhos azuis e jeitinho amável, ela se espremia para sair debaixo daquela cadeira. Levei um tremendo susto. Como ia imaginar que ela estivesse ali? Não tive tempo de perguntar o que fazia. Seu andar encantador, até o final do corredor, me deixou sem fala. Batendo à porta da última sala, foi recebida com um “Hello! How are you?” pelo outro professor. Depois, fui descobrir que seu nome era Mila.

Minha turma também era pequena, além de mim havia mais três alunos. Assim que a professora chamou, fomos entrando. Fui o último. Pensei que seria... Uma nova aluna apareceu, pouco antes de a porta ser fechada. Mila faria aula conosco. Num charme sem igual, sentou-se ao meu lado.

Não foram recusadas apresentações. Todos tinham que conhecer a nova estudante. Mas não foi ela que disse seu nome, e sim a teacher. Talvez não pudesse falar, afinal, estava aflita... nem tanto! Passou a aula toda com gracejos para mim. Era praticamente impossível não perceber. Havia sido amor à primeira vista.

No final da aula, ela saiu um pouco antes de mim. Não sabia se me despedia dela ou não. Com seu jeito saltitante, desceu os degraus que levavam até a rua. Não podia deixar aquela oportunidade passar em branco, precisava falar com ela. Pensei em arriscar um beijinho, mas me contentei em passar a mão vagarosamente pelo seu pequeno rosto. Arisca, fez cara de quem gostou, mas, num único salto, foi embora.

sábado, 2 de julho de 2011

Sonho de Astronauta


Mal raiava o dia no sertão nordestino e o sol já rachava as poucas mamonas que resistiam à temporada de seca. Tarcísio, às seis horas da manhã, se preparava para mais um dia de trabalho.

Não tinha nem onze anos, mas já trabalhava arduamente para ajudar nas despesas. O pai era ajudante de pedreiro na construção vizinha e a mãe ficava em casa cuidando dos outros sete filhos. Ele era o mais velho e, por isso, decidiu que arrumaria, sozinho, um emprego na companhia de reciclagem.

A família era pobre e morava em uma vila condizente com a classe baixa. Nas ruas, não havia energia elétrica; nas casas, faltava água encanada. Pois isso, Tarcísio era obrigado a aproveitar o calor natural do amanhecer para se banhar no riacho.

Enquanto se molhava com a água gelada pelo orvalho, imaginava coisas. Geralmente coisas impossíveis de acontecer. Então, um dia, enquanto a água lavava a nuca, Tarcísio percebeu que tinha um sonho.

Não era um sonho do tipo que se tem dormindo, muito menos sonho de padaria com creme e açúcar. Sonhos desse tipo, Tarcísio não tinha, afinal, dormia pouco e nunca sobrava dinheiro para sobremesas.

O sonho de Tarcísio era sonho de desejo, sonho de vontade. Desejava ser astronauta, pois tinha vontade de decolar até o céu e conhecer de perto as estrelas e os planetas que ficam escondidos atrás das nuvens.

Um dia ainda vou transformar esse sonho em realidade, gostava de pensar.

A partir de então, passou a imaginar como devia ser bom se tornar um astronauta: a adrenalina aumentando e o cronômetro entrando em contagem regressiva até que, de repente, fogo!

Num desses banhos de imaginação, Tarcísio perdeu a noção do tempo e isso fez com que ele chegasse cinco minutos atrasado na companhia de reciclagem. O chefe parecia bravo e foi logo bufando:

— Como você explica esse atraso? Isso é um absurdo! Eu não admito gente vagabunda na minha empresa. Mais um atraso e você será demitido. E só para constar: esses minutos serão descontados no seu pagamento, no fim do mês.

Como um cãozinho faminto e medroso, ele baixou a cabeça e foi para sua função: amassar latinhas de alumínio. Era obrigado a pisar em mais de mil latinhas por dia para ganhar menos de cem moedas por mês.

Numa pisada meio torta, a latinha rasgou no meio e, num pulo desordenado, acertou a perna direita de Tarcísio. Fez um corte pequeno, mas que começou a sangrar.

Grandes astronautas não se desesperam com um cortinho.

Ignorou a dor, segurou o choro e apertou o lugar do corte, com as mãos sujas de terra, para estancar o sangramento. Terminou o serviço com a perna esquerda. Demorou mais do que de costume e, consequentemente, atrasou-se para a entrada da escola.

Estudava à noite, na única escola pública da região, que ficava na divisa com outra cidade. A vila em que ele morava era pequena, todos se conheciam, e, por coincidência, sua professora era a mulher que morava na casa de frente para a sua.

Ainda que conhecida, a mulher também não era simpática com atrasos. O horário da noite era alternativo, geralmente para os adultos que não tinham estudo e precisavam trabalhar durante o dia, portanto eles deveriam ser responsáveis e não atrasar.

A essa altura do dia, Tarcísio nem sentia mais o corte na perna, mas suas orelhas doeram quando a professora deu-lhe a primeira bronca por desobedecer ao horário. Em seguida, a segunda bronca — por não ter feito a lição de casa.

— Mais uma vez sem cumprir o dever... E você ainda acredita que um burro como você vai passar de ano?

Tarcísio, mais uma vez, fez-se de filhotinho, com o rabo entre as pernas. Durante o intervalo, em vez de aproveitar o recreio, ele ficou na sala de aula, respondendo aos exercícios que não havia feito.

Grandes astronautas não desistem no primeiro obstáculo.

No fim da aula, a professora foi embora com seu carro de quatro décadas atrás e não ofereceu carona. Tarcísio caminhou, como de costume, os quase sete quilômetros até chegar à sua casa.

Já era madrugada e o estômago roncava. Na mesa, apenas um pão seco, o qual comeu com a água da moringa. Foi sua primeira refeição do dia.

A rotina se repetiu por mais alguns dias até que o corte na perna mostrou ter sido a porta de entrada para inúmeras bactérias. Com as defesas do corpo enfraquecidas, Tarcísio veio a adoecer.

Grandes astronautas não ficam na cama por muito tempo.

E lutou contra a infecção que havia contraído. Pensava no dinheiro que deixava de ganhar a cada dia que faltava do trabalho; pensava nos irmãos que deixava de ajudar sem o dinheiro; pensava na escola e nas aulas que perdia. Mas nada disso o afastava do sonho de astronauta.

Em menos de uma semana, a temperatura corporal aumentou e as batidas do coração entraram em contagem regressiva. Finalmente, havia chegado a hora de Tarcísio conhecer o céu.