sábado, 22 de dezembro de 2012

Quando a casa não tem chaminé, Papai Noel entra por onde?



— Fran, quando a casa não tem chaminé, tipo essa da vovó, o Papai Noel entra por onde?

— Eu não sei, Fabinho... Coca ou Fanta Uva?

— Fanta Uva!

Os primos conversavam, enquanto procuravam alguma guloseima na geladeira. Era véspera de Natal; devia ter chocotone em algum canto dali.

— Fran, veja como a lâmpada da geladeira está piscando: acende, apaga, acende, apaga...

— É, ela anda meio vaga-lume! Mas não é de se surpreender, já que a coitada é presente de casamento da vovó.

— Aquilo é um panetone?

O embrulho estava escondido atrás do pacote de vagens, que já permanecia ali há algum tempo, porque ninguém queria comê-las.

— É de frutas cristalizadas. Eca!

— Então, vamos ficar só com a Fanta Uva.

Enquanto bebiam, houve um minuto de silêncio; mas foi só silêncio externo, porque, no pensamento, Fabinho armava uma proposta:

— Fran, e se esta noite a gente ficar acordado para ver por onde é que o Papai Noel vem?

— E quem disse que é verdade que ele vem?

— Vem, sim! Eu vi a vovó tirando xérox da conta de telefone ontem. Tenho certeza de que foi para atualizar o endereço na lista de visitas dele.

A menina topou com um “tanto faz”, dando de ombros. A manhã foi entardecendo até anoitecer. A família se reuniu na sala de jantar, onde havia uma mesa larga e cheia de comida que a gente só vê em fim de ano.

— Fran, será que esse peru veio do Peru?

— Eu acho que era uma perua e que veio de Nova Iorque.

— Para mim, ele era um gavião disfarçado de peru. Trabalhava como detetive, gostava de funk e torcia pelo Corinthians.

A família comia tudo que estava por ali, menos as uvas-passas, que a vovó experimentou com uma lambidela e disse que havia passado do ponto.

Após a ceia, os adultos decidiram descer à praia, para esperar a meia-noite junto ao mar. A avó decidiu ficar em casa, pois estava cansada. Os primos disseram que fariam companhia à avó — mas, na verdade, só queriam esperar até a hora em que o Papai Noel chegasse.

A avó foi para o quarto, enquanto Fabinho e Fran jogavam pif-paf sobre o tapete da sala. De repente, ouviram um barulho na cozinha. Foram correndo ver o que poderia ter acontecido e se depararam com presentes em cima da mesa e a porta da geladeira se fechando.

— Veja, Fran! Será que o Papai Noel entrou pela geladeira?

— Mas é claro! Como não pensamos nisso antes? O refrigerador é o melhor atalho do Polo Norte até a casa das pessoas.

— Isso quer dizer, então, que as vagens são, na verdade, ajudantes do Papai Noel disfarçados de legume?

A garota concordou. Abriu a porta da geladeira, para ver se ainda dava tempo de ver alguma coisa. Mas tudo estava normal, com exceção das vagens, que não estavam mais lá, e da lâmpada que continuava piscando.

— É, a geladeira continua meio vaga-lume.

— Vaga-lume, não, Fran! Ela está árvore de Natal.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Era uma vez


Selecionado no Prêmio SESC de Literatura "Rubem Braga" — 2012


Saber se realmente os opostos se atraem ou se tudo não passou de uma mera coincidência não é de minha alçada. Sei apenas que receberei duras críticas, críticas construtivas e destrutivas, por ter dado meu último adeus ao bem-dizer e deixado a desejar com a estilística desta crônica. Embora pareça um comportamento inenarrável, tentarei agradar gregos e troianos ao revelar em alto e bom som esse segredo guardado a sete chaves.

Parece que foi ontem que a conheci, na aula de Literatura Brasileira. Era uma menina veneno, com olhos de ressaca e que dispensava quaisquer apresentações. De cabelos sedosos e nariz arrebitado, era uma bonequinha de luxo, cheia de não-me-toques. Era complicada e perfeitinha, uma virgem dos lábios de mel, mas que tinha um defeito incorrigível: abusava dos lugares-comuns.

Eu fugia dos vícios de linguagem como o diabo foge da cruz, então, digerir as palavras dela era chumbo grosso; corroíam em meu peito. Ela iniciava qualquer papo furado dizendo cobras e lagartos, fazendo caras e bocas. Eu fazia boca-de-siri para evitar o toma lá dá cá e colocava um ponto final na conversa. Mesmo assim, ela roubou meu coração e me fez ter uma vaga ideia do que é se entregar a uma paixão avassaladora.

— Mergulhei nas páginas de um livro — ela contava — tão sem eira nem beira que fico com vontade de tecer comentários que caiam como uma bomba no autor. Mas tenho medo de chover no molhado. Será que não é melhor correr por fora e fugir da raia na hora da resenha em vez de botar pra quebrar?

— É — eu respondia, enquanto pensava na morte da bezerra.

Ela dizia que só abria a boca quando tinha certeza, mas a minha certeza era a de que ela só assassinava a gramática. No fundo, esse jeito de ser a transformava em uma lenda vida. Talvez o cérebro dela fosse um esgoto a céu aberto ou tivesse sofrido uma lavagem cerebral quando criança, pois estava literalmente tomada pelos erros crassos. Eu arrastava a asa para ela, mas, para não dar bandeira, logo batia em retirada e respirava aliviado.

Virar a página, no entanto, não adiantava. De um leque de opções, ela era a única que preenchia minha lacuna. Era uma faca de dois gumes: ou ela ou a língua portuguesa. Tinha medo de meter o pé pelas mãos, mas não tive escolha: conjuguei esforços e pus as cartas na mesa. Por ela, tomaria banho gelado no inverno e iria a pé do Oiapoque ao Chuí. Ela podia cantar vitória e sagrar-se campeã.

Já na reta final, encerro esta crônica com chave de ouro, afirmando que chegamos a um denominador comum. Eu me entreguei a ela de mãos beijadas, dando um tiro de misericórdia no conhecimento linguístico que ainda tinha. Num futuro próximo, ela seria uma esposa dedicada que me daria um filho exemplar. Eu seria seu eterno apaixonado até que ela se tornasse uma viúva inconsolável.

Dei a cartada decisiva: desfiz o laço indissolúvel que tinha com o bom português e me aliei ao inimigo, afinal, quem vê cara não vê coração. E quem vê coração não dá muita importância ao lugar-comum, pois não há maior clichê do que morrer de amores.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Toques de Leve



Entrou na loja, o olhar indecifrável. O tronco comprido estava coberto por uma manga longa de malha que destacava a magreza e combinava com o sobretudo. Sua preferência por cores escuras era notável pelo preto que descia da cartola e ia até os sapatos. Apoiou-se na bengala e caminhou mancamente até o balcão. Os dedos finos tocaram lentamente a madeira envernizada e a voz rouca pediu:

— Um frasco de arsênico.

Aterrissou a carteira perto do caixa e pegou calmamente o saquinho de papel que continha a cura para sua doença terminal. Foi para casa, colocou o vinil dos Beatles na vitrola e se sentou. Ao som de Paul e Lennon, deu três goles tranquilamente e repousou as pálpebras cansadas. Em poucos minutos, o espírito imergiu as profundezas do céu e foi tocado suavemente pelas estrelas.

sábado, 17 de novembro de 2012

IDentidade



Minha identidade está
idem em idade à paz.
Passo o tempo a controlar
o id: entidade voraz.

sábado, 10 de novembro de 2012

Identidade Cultural


Brasil: nação, raça, crença,
cultural identidade.
Sendo verde de nascença,
sei que o amarelo me invade.


sábado, 3 de novembro de 2012

Bom Dia!



Um sorriso na manhã
de um dia sem tempestade
e um beijinho de hortelã
marcam sua identidade.

sábado, 27 de outubro de 2012

Pique-Esconde



— ...198, 199, 200. Lá vou eu!

Mas o irmão adolescente sequer tinha se levantado do sofá.

sábado, 20 de outubro de 2012

sábado, 13 de outubro de 2012

o poste e o crack



o poste, com sua fraquejante bunda de vaga-lume,
ilumina o que ocorre bem abaixo dele e observa:
chegam
sentam               
sorriem
trocam
pedras
acendem
fumam
soltam
fumaça
sorriem
pegam
outras
pedras
acendem
(trago)
(trago)
(trago)
zonzos
riem
zonzos
caem
zonzos
ficam
passa
noite
passam
horas
chega
ajuda
médica
tarde
tarde
nenhuma surpresa.

sábado, 6 de outubro de 2012

nossa valsa



               do volume, as roupas
             o                                       d
             t                                        e
            n                                        s
            e                                        c
            m                                      e
            u                                      r
            a                                   a
com o                             m...                  dois corpos ocuparam o mesmo espaço

sábado, 29 de setembro de 2012

adeus, caipirinha!




f
a
r
t
j           m         e          d          c
á          e          i           o          ê

sábado, 22 de setembro de 2012

Vida de Pedra



Desde que me conheço como pedra, percebo que não exerço bem essa função. Evito ao máximo atrapalhar, incomodar ou dificultar as coisas. As pessoas é que se atrapalham, se incomodam, dificultam tudo comigo.

Minha primeira experiência marcante foi quando eu ainda morava em uma caverna. Ali também vivia um homem barbudo, já de meia idade. Ele havia conquistado sua primeira amada, com a qual provavelmente se casaria e procriaria. Estava tão feliz que fez uma pintura rupestre sobre a família que sonhava em ter. Fui usada para registrar uma das maiores alegrias da vida de um homem.

Mais tarde, um grupo de trogloditas começou a me quebrar até me deixarem com um tamanho fácil para carregar. Do lado de fora, vendo pela primeira vez a luz do sol, senti lapidarem de um lado e de outro. De repente, me jogaram ladeira abaixo e rolei como se rola uma boa roda. Estive presente na maior invenção da época.

Depois de terem me utilizado por bastante tempo, não aguentei tanto impacto e me parti ao meio, o que me fez ficar isolada e sem utilidade naquele momento. Porém, com a chegada do período glacial, servi de abrigo para diversos insetos da era do gelo.

Séculos depois, tive as partes separadas. A distância entre mim e eu mesma foi um sofrimento necessário. Um lado foi trabalhado e utilizado como banco para a plateia do teatro grego se sentar; o outro participou da formação de um lindo palácio. Infelizmente, este foi explodido e o meu pedaço se desmanchou no ar.

Eu, o lado sobrevivente, continuei sendo útil por gerações. Participei inclusive da escravatura, aprisionando escravos. Confesso que não me orgulho desse meu feito.

Muitos anos depois, olharam para mim e enxergaram arte. Levaram-me para que eu fosse esculpida. Poliram daqui; poliram de lá. Ao terminarem, descobri que a arte vista em mim era a poesia. Protagonizaria diversos poemas a respeito da morte.

Meu destino foi virar lápide — pela minha eternidade de pedra, uma eternidade que pode ter um fim inesperado.

Durante o dia, as pessoas choram sobre mim. Após o pôr do sol, eu é que entro em prantos sem entender por que eu, que sempre fui a favor da felicidade, me tornei responsável por tanta tristeza. Certamente, não tenho um coração que condiz com a minha imagem.

sábado, 15 de setembro de 2012

Garota Terremoto



Um sonho que eu tinha na minha pré-adolescência pós-moderna era conhecer a Europa. Meu paladar até sentia os sabores do chocolate suíço, do salsichão alemão e da pizza italiana, só de imaginá-los. Depois que fui crescendo, as suíças, as alemãs e as italianas é que deram um novo gosto à minha juventude. Mas, vendo o tanto de desastres que acontecem do lado de lá do Atlântico, entrei numa desilusão barroca.

Para não descartar totalmente a Europa e passar a vê-la apenas como ponto alto das tragédias, decidi amenizar tudo com literatura. Dentre todos os acidentes europeus, os meus preferidos são os de trem. Acredito ter uma paixão secreta por descarrilamentos. Os atentados no metrô de Moscou e de Madri são exemplos que serviram de base para textos que encarrilaram no gosto dos leitores.

Mas há uma coisa, em Lisboa, que sempre me intrigou mais do que os meios de transporte: os fenômenos da natureza. Não me refiro aos portugueses, trovejados em avalanches de piadas tempestuosas; e sim às catástrofes naturais, em especial o terremoto de 1755. Faz quase trezentos anos desde essa desgraça, mas os abalos sísmicos continuam em alta por lá.

Com a facilidade da internet em aproximar pessoas distantes e criar intimidades com estranhos, conheci uma garota lisboeta — para mim, garota; para ela, rapariga. Ambos dividíamos o mesmo amor pelas Letras e esse foi o elo da nossa amizade virtual. Ela, então, se apresentou como a miúda benjamim de um gajo porreiro, e eu também era o filho caçula de um cara simpático. Foi mais uma coisa em comum.

Antes mesmo de transformá-la decididamente em algo real, precisei consolá-la: foi quando José Saramago morreu. Sua terra estava em tremor, num terramoto, como ela dizia, e precisou se apoiar em mim para não cair. Acabamos por confiar um no outro. Em menos de trinta tuitagens, já estávamos trocando senhas pelo privativo. A partir de então, ela tinha acesso a todas as minhas contas de sites de relacionamento.

O envolvimento era quente até que um novo terremoto começou. Eu era a favor do retorno do trema, e ela era contra a queda dos c e p impronunciáveis. Eu queria a volta dos acentos nas paroxítonas terminadas em ditongo, e ela continuava abolindo o circunflexo. Eu insistia no você, ela batia o pé no tu. Dentre tantas coisas em comum entre mim e ela, havia uma diferença que não nos deixava ser um casal feliz: a língua.

Após muitas discussões lexicográficas, decidimos bloquear um ao outro; era isso ou se comunicar em inglês. Por fim, me lembrei de que precisava trocar a senha das minhas redes sociais, mas já era tarde. Ela já havia excluído fotos, insultado amigos, adicionado spams, feito um terramoto no meu perfil. Ah, aquela rapariga!

sábado, 8 de setembro de 2012

Se Fernando Pessoa rima com Lisboa...



Por que é que João Paulo Hergesel não rima com Alumínio? A resposta pode variar entre estas duas: (a) porque eu não sou um escritor de verdade; (b) porque nasci no lugar errado.

Vangloriando-me um pouco e tomando como certa a segunda alternativa, fiquei me perguntando o que seria melhor: naturalizar-me em uma cidade que rime com meu nome (como Ilhéus, Morro do Chapéu, Montevidéu) ou mudar meu sobrenome para algo que rime com Alumínio (como Plínio, Abissínio, Patrocínio). No pior das hipóteses, Alumínio é que poderia mudar de nome, para Porta do Céu, por exemplo.

Então, um dos meus neurônios, raciocinando, quis resolver esse impasse, alegando que, embora eu more em Alumínio desde bebê, minha terra natal é Sorocaba. Essa solução, na verdade, não ajudou em muita coisa, pois Sorocaba tampouco rima com João Paulo Hergesel. Talvez eu devesse inventar um pseudônimo para começar a assinar meus trabalhos: Bicho-da-Goiaba! É a minha cara e rima com Sorocaba.

Mas a ideia do pseudônimo ainda não havia me deixado satisfeito; não estava feliz em ser um inseto poético. Tentei rimar meus nomes do meio, Lopes e Meira, mas não tive bom resultado. Foi quando passei a imaginar que a primeira alternativa é que pudesse estar correta. Mesmo participando de diversos concursos literários, publicando livro, escrevendo para jornais e blogs, estudando Letras e marcando presença em tudo quando é evento ligado à literatura, talvez eu não tenha nascido para a escrita.

Algumas doses dessa cruel e suposta realidade me fizeram viver uma frustração artística por um tempo. Mas logo dei a volta por cima e preferi pensar que, com Fernando Pessoa, tudo não passou de uma coincidência. Não é a rima do nome com a cidade natal que define o escritor. Exemplos disso são que Clarice Lispector não rima com Tchetchelnik, Vinicius de Moraes não rima com Rio de Janeiro e Monteiro Lobato não rima com Taubaté.

Já havia até me conformado, mas ainda não estava totalmente feliz: se Fernando Pessoa pode, por que eu não posso? Enquanto perdia tempo matutando sobre isso, uma amiga da faculdade, vendo meu desespero, resolveu logo o problema: o escritor João Paulo Hergesel só pode ter vindo do Beleléu! É um lugar misterioso, indeterminado, que não aparece em nenhum mapa, mas que certamente está repleto de imaginação e criatividade.

Desde então, me senti mais poeta.

sábado, 1 de setembro de 2012

Se a ilhota é minha, chamo de ilhinha!



A ilha de Onira é a menor do mundo, com somente um palmo de extensão. Mas a ilha de Onira é também a maior do mundo, pois abriga bilhões de habitantes e se limita com milhares de universos. É um lugar tão perto que pode levar para tão longe. Não tem mapa físico nem político; aparece apenas no mapa anatômico. É uma ilha particular, em que só entram aqueles que forem autorizados. Como sou canhoto, ela fica do meu lado esquerdo.

Essa ilha é uma porção de aveia rodeada por suco de jabuticaba com ameixa. Nela, como em toda ilha, tem coqueiros, pedras e areia. Mas os coqueiros dão palmito, as pedras flutuam e a areia tem gosto de groselha. Também tem nuvens no céu azul, mas, dessas, eu não sei o sabor nem o número da certidão de nascimento, pois, sempre que estou lá, ando por cima delas e sinto cócegas.

Na primeira vez que me lembro de ter ido para Onira, conheci uma barata roxa que era dona de um controle remoto. Ela tomava Coca-Cola, falava inglês e morava no norte, mas, como estava de férias, queria visitar o sul. Para isso, ela apertou um botão vermelho de seu controle e o planeta se inverteu. Segui o exemplo e passei a contrariar tudo o que um dia alegaram que era inalterável.

Depois que criei gosto pelo lugar, fiz amizade com portas, tubarões e edredons que pulavam amarelinha. Acredito que eu tenha ficado íntimo deles, pois, numa das vezes, uma vaca veio me contar que o delegado havia prendido a respiração, mas ela deu um jeito de fugir com ajuda de um sol que se chamava Iolanda.

Passei muito tempo lá até descobrir que, assim como todo território, essa ilha também tinha hino, bandeira e brasão: o hino era feito em mímica, a bandeira era dois e o brasão ficava na churrasqueira presidencial.

Certa vez, quando eu já estava me tornando adolescente, escutei um helicóptero falando para uma pétala de cravo que, em algum lugar daquela areia de groselha, havia um tesouro enterrado. Não tive dúvidas e comecei a cavoucar, com canudinho de milk-shake, até que atingi algo barulhento e curioso.

De repente, do buraco que havia se formado no chão, começaram a vazar palavras. Saíam como petróleo, porém com tamanhos, cores e formatos diferentes. Tinha palavra curta — pé — e tinha palavra longa — hipopotomonstrosesquipedaliofobia — e tinha palavra bonita — veludo — e tinha palavra assustadora — trovejante — e tinha palavra que nem era palavra — gunkh. Peguei um balde de almaço e comecei a juntar todas elas. Desde então, tenho feito meus relatos de todas viagens que faço por lá.

Hoje, passo mais tempo na ilha de Onira do que em qualquer outro lugar. Algumas pessoas se incomodam com isso, pois, sempre que precisam da minha atenção, estou ocupado demais cantando no karaokê com algum porco suíço. Vivem me dizendo que devo me esquecer de lá, não me apegar a essa loucura. Já cheguei a considerar a hipótese, mas não encontrei maneira de cumpri-la: lá, e apenas lá, posso me ousar e escrever crônicas sem um pingo de juízo.

sábado, 25 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Vinte mil réguas submarinas



O importante é ser você.
Mesmo que seja estranho, seja você.
PITTY, Máscaras.

Decidi que queria ser um coala, depois de ter assistido a um documentário na televisão a respeito do assunto. Suportaria até injeções e remédios amargos para modificar o DNA, só para me tornar um ursinho acinzentado fofíssimo que dorme o dia todo e só acorda para comer.

Um dos meus companheiros — que fica comigo, todas as noites, em cima do muro, miando para o além — deu risada e disse que era mais fácil eu atravessar o oceano do que realizar esse meu desejo. Pensei pouco a respeito do assunto, mas o suficiente para aceitar o desafio e afirmar:

— Vou me fazer de gaquático e ser o primeiro felino a descobrir o que há do outro lado do mar.

Gatos morrem de medo de água, ainda mais se ela for salgada e cheia de ondas; mas a vontade de fazer o que parecia impossível arranhava dentro de mim. Vasculhei o depósito de lixo de uma loja de produtos para natação e peguei um equipamento de mergulho, tamanho pequeno, que encontrei jogado fora.

Enquanto as ondas vinham a caminho da praia, fui de encontro a elas, usando os pés de gato para abrir espaço. Senti a água fria e a areia molhada e deslizante ao fundo. Tomei a última gota de coragem que ainda tinha e, evitando tomar as gotas do mar, submergi no Atlântico.

Via os crustáceos fazendo buracos na areia e via ostras saindo das conchas. Quanto mais eu andava, mais afundo eu entrava e mais beleza marítima conhecia. “Espero que não tenha tubarão por esses lados”, pensei enquanto me aproximava de uma curiosa ilha submersa: além de estar debaixo da água, ainda tinha, como cerca, estruturas de madeira que se pareciam muito com réguas escolares.

Procurei a entrada e descobri que o portão, na verdade, era um buraco que ficava entre os números 50 e 75. Em outras palavras, eu precisaria escalar meio metro e passar por uma abertura de exatamente 25 centímetros. Usei as unhas resistentes para subir pela cerca e saltar para o outro lado. Quando caí no chão, dei de cara com uma estrela-do-mar.

— Meu nome é Janaína — ela disse.

Levei um susto tão assustador que berrei; mas o miado virou apenas uma bolha de ar, que vazou da máscara de mergulho e flutuou até a superfície. Mais calmo, olhei atenciosamente para a estrela e percebi que a conhecia de algum lugar. Ela, então, explicou:

— Sou uma estrela que caiu do céu para enfeitar o mar.

Certamente, ela havia sido uma das que conheci na viagem que fiz ao céu quando morri de susto. E, por ironia das circunstâncias, quase que morri de novo; só que, agora, aprendi a controlar o terror que sinto.

Fiquei surpreso ao encontrar alguém conhecido ali, no fundo do oceano, e quis começar a conversar. Antes, no entanto, que eu pudesse mandar um miau, uma sardinha apareceu detrás das algas marinhas e quase se esbarrou em mim. Quando percebeu que tipo de animal eu era, saiu gritando para que até Netuno ouvisse. As outras sardinhas saíram de seus corais desesperadamente e provocaram a maior confusão para ver quem conseguia se esconder do devorado de peixes.

— Calma, gente! — disse Janaína. — Ele é apenas um gato caolho do rabo comprido e não faz mal a ninguém...

A galera estava se tranquilizando, até que ela decidiu terminar a apresentação:

— ... a não ser às sardinhas que caça para se alimentar.

Voltou a anarquia: peixe subindo em cima de peixe, barbatana batendo em nadadeira, espinha furando escama. Na tentativa de acalmá-los, tirei o sugador de oxigênio da boca e confessei:

— Não se preocupem! Só como sardinha-de-água-doce. Vocês, salgadas, podem me causar pressão alta.

As sardinhas ainda estavam receosas com minha presença, mas puderam perceber, pela honestidade refletida no meu único olho, que eu estava em missão de paz.

— Ufa! Já estava pensando que era mais uma armadilha da Pólvora — uma delas disse.

Perguntei quem era essa, e elas me contaram que Pólvora era a criatura mais terrível do recife das Vinte Mil Réguas Submarinas. Com os oito tentáculos de polvo, ela era capaz de esmagar qualquer um que considerasse inimigo. Todo mundo a temia.

— E se ela fica assustada — disse uma sardinha — joga uma tinta escura na água e deixa quem estiver por perto totalmente cegueta.

— Um dia — disse Janaína — ela estava tão irritada que comeu uma das minhas pontas. Minha sorte é que estrela-do-mar é capaz de se regenerar, e ganhei um braço novo rapidinho.

De repente, toda a reunião de boas-vindas foi interrompida por mais gritos e correria. Pedi para que não fizessem tanta euforia, pois eu era um gato bonzinho; mas não sobrou uma criatura viva próximo dali; até as algas se encolheram atrás das pedras.

Estava chegando à conclusão de que seres marítimos eram medrosos demais, mas, antes de eu confirmar minha hipótese e continuar a caminhada, senti uma gosma gelada, como se fosse um desentupidor de pia, sobre minhas costas. Quando virei o pescoço, havia uma gigantesca espécie arroxeada de polvo fêmea. Ela enrolou um dos tentáculos em mim e murmurou:

— Nunca tive gatos escravos. Espero que você faça um trabalho melhor do que o daquela sereia inútil que aprisiono no calabouço do meu castelo.

Fui levado para o palácio de Pólvora e largado na mesma cela em que estava a sereia de que ela havia falado. A garota-peixe me viu com olhar piedoso e foi conversar comigo, para saber se eu estava bem. Ela se apresentou a mim como Mariana.

Em três minutos de conversa, descobri que Mariana nunca conheceu os pais. Quando o pai dela soube que a mãe dela estava grávida, entrou em seu disco voador e voltou para o planeta de origem. E a mãe, depois do nascimento da pequena sereia, decidiu explorar o litoral do Cabo da Boa Esperança.

(Na verdade, Mariana não sabia bem o que havia acontecido para que os pais se desligassem da vida dela sem deixar recado após o sinal, por isso preferia acreditar que tinha um pai extraterrestre e uma mãe historiadora.)

Nossa conversa foi interrompida, antes de eu dizer quem era. Pólvora me arrancou da prisão para que eu segurasse a antena da televisão do quarto dela — parecia inacreditável, mas a tecnologia submarina era semelhante à que tínhamos em terra.

Enquanto eu colocava um pedaço de palha de aço na ponta, ouvi o jornalista anunciar: “O filho da rainha lula vai se casar!” E acrescentou que o pretendente seria escolhido de uma maneira inusitada: eles visitariam as casas e entrevistariam as interessadas, até que o filho da lula encontrasse um peito em que seu coração se encaixasse.

Pólvora viu, aí, uma ótima oportunidade de se casar, mas sabia que, com a sereia vivendo sob o mesmo teto, seria difícil o filho da rainha prestar atenção no charme roxo dela. Mariana conseguia ser mais bonita, mais simpática, mais carismática e mais apaixonante do que Pólvora sonhava em ser. Então, a vilã decidiu pensar em uma forma de fazer com que Mariana não fosse notada.

Primeiro, pensou em escondê-la no guarda-roupa; mas o lugar era muito apertado, e ela conseguiria abrir a porta, já que não havia trancas. Depois, pensou em prendê-la dentro de uma caixa de contorcionismo; mas sequer havia uma caixa dessas na casa! Então, Pólvora encontrou a ideia de que precisava: transformaria Mariana em um tritão.

— Claro! Se Mariana for um menino, o filho da lula não poderá se casar com ela.

Assim, começou a pensar em voz alta e citou milhares de possibilidades de como poderia fazer isso. Pensou em cirurgia plástica, em maquiagem artística e até em comprar um forno capaz de modificar a aparência das pessoas. Mas tudo era muito caro e complicado, ainda mais para quem estava no fundo do mar. Resolveu que a transformação deveria ser feita passo a passo.

Num momento em que Mariana estava distraída, Pólvora deu início ao plano, despejando um pote inteiro de creme para nascer barba no rosto dela — era um creme potente, feito com couro de peixe-boi, que deixaria as bochechas dela com pelos e faria um bigodão esculachado crescer debaixo do nariz. Mariana tentou se lavar, mas o creme já havia surtido efeito.

Depois, Pólvora preparou um refrigerante especial: misturou um pouco de pó de pérola com água e inseriu um pouco de gás. Mas não era um gás qualquer de refrigerante; era gás hexafluoreto, que faz a voz engrossar. Deu para que Mariana tomasse um gole, e ela virou logo o copo — quando foi falar, a voz saiu como de cantor de ópera.

Na mesma tarde, Pólvora trocou todas as roupas do guarda-roupa de Mariana: tirou os vestidos, os laços e até os sutiãs. No lugar, colocou roupas de tritão. Como se não bastasse, deu um jeito de sujar as roupas que Mariana estava usando, para que, quando a sereia fosse se trocar, tivesse a obrigação de escolher um dos ternos e cartola.

Então, chegou a vez do quarto e último passo, o mais difícil. Pólvora precisaria de um feitiço para permitir que Mariana fizesse xixi de pé. Bastava isso, e se tornaria um tritão perfeito. A vilã retirou um livro velho e medonho de um fundo falso da gaveta de talheres. Era um livro de poções e encantamentos. Na página sobre transformações, ela leu:

“Para que o corpo físico seja transformado, é necessário juntar, numa mesma poção: três gotas de lágrima de golfinho, nove patas de siri torradas e um bigode de gato.”

Os golfinhos, ela arrumaria na costa leste; os siris viviam passando em frente do jardim do palácio; mas o gato... Enquanto ela imaginava onde arrumaria um gato insignificante para arrancar-lhe um bigode, solucei inocentemente e fui descoberto.

Com a poção preparada, Pólvora entrou sorrateiramente no banheiro, onde Mariana tentava dar um jeito de arrancar a barba do rosto. A madama polvo sussurrou para si:

— Preciso dar um jeito de jogar isso na cauda dela rápido, antes que as maldades iniciais percam o efeito.

Antes de conseguir se aproximar de Mariana, entretanto, um barulho de vidro se quebrando assustou Pólvora e fez com que ela derrubasse a poção na privada. Correndo até a sala, ela encontrou Janaína espatifada no chão, mas com uma capa de super-heroína e uma expressão corajosa na face:

— Esta é a hora da estrela... Janaína Star ao resgate! — disse. — Vim salvar meu amigo Miau.

Pólvora havia ficado irritadíssima e pareceu que iria esmagar Janaína com uma tentaculada só, de forma que a pobrezinha nem conseguiria se regenerar depois. Mas um mutirão de sardinhas entrando pela vidraça quebrada a distraiu.

— Resolvemos que não vamos mais ficar caladas — uma delas disse.

— É isso aí! Viemos libertar a Mariana.

A essa altura, Mariana já havia conseguido se barbear; havia encontrado a roupa dela, que estava escondida debaixo da cama; e o gás hexafluoreto já havia perdido o efeito. A sereia já estava normal novamente. Isso fez que com Pólvora desabasse em lágrimas de nanquim.

— Não é justo! Essa garota é tão linda, e eu... eu sou um monstro. Todos a amam, todos a querem como amiga. Mas eu sou a abominação dos mares, e a única chance que eu tinha de me livrar dessa peste e me casar com alguém... essa chance foi perdida.

Enquanto Pólvora desabafava, a campainha tocou. Mariana abriu a porta e recebeu a rainha lula e o filho. No mesmo momento, o rapaz lula exclamou:

— Que moça mais linda!

Mais nanquim foi liberado por Pólvora, o que fazia com que o ambiente ficasse ainda mais opaco, difícil de enxergar.

— Viu? Todos os olhares são voltados para Mariana — a madama polvo disse.

— Mas estou falando de você, roxinha — disse o filho da lula. — Para que vou querer uma sereia, que é metade peixe e metade humana, se posso entrelaçar meus tentáculos nos seus, hein?

Pólvora, que sempre teve inveja da sereia, foi apresentada à beleza própria. Explodiu de tanto contentamento, que jorrou altas doses de nanquim no mar. Ninguém conseguiu ver mais nada. Quando a escuridão passou, a madama polvo e o filho da lula já não estavam mais ali; provavelmente, haviam se mudado para um lugar onde vinte mil réguas não seriam capazes de mensurar o tamanho do amor que sentiam um pelo outro.

Depois disso, dei adeus a toda a peixarada, em especial à Janaína. E voltei para a praia, onde a primeira criatura que encontrei, coincidentemente, foi meu companheiro das serestas.

— Ué, você não disse que queria ser coala?!

— Decidi que quero ser apenas um gato caolho do rabo comprido. Se eu não for isso sempre, não quero ser mais ninguém.

sábado, 18 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Senhor desensorrisado



Vem de mansinho a brisa e me diz
É impossível ser feliz sozinho...
TOM JOBIM, Wave.

A água do rio estava bem cristalina, e eu conseguia enxergar as sardinhas nadando para lá e para cá. Posicionei minha pata direita perto da superfície; assim que um peixinho bobeasse e emergisse para pegar as sementes que caíam da árvore e boiavam tranquilas, eu daria o golpe fatal. No entanto, quando estava chegando o momento exato, fui transportado misteriosamente para uma sala enorme com móveis imensos.

A porta estava entreaberta e percebi quando um pouco de névoa entrou no cômodo; alguns segundos depois, passou um avião. Eu estava em um reino acima das nuvens, num lugar que nem sabia que poderia existir. Enquanto me sentia totalmente fora da realidade, um homem gigantesco e carrancudo reclamava aos berros com uma varinha de condão:

— Eu peço um gato, e você me traz essa porcaria que nem tem olho? E se isso me arranhar?

— Não vou arranhar você — eu disse. — Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

Sabia que eu poderia ser entendido por tudo quanto é tipo de coisa: brinquedos, veículos, corpos celestes e até crianças. Só adulto mesmo é que não me entendia. Mas um gigante... Eu nunca havia visto um gigante de perto, muito menos tentado me comunicar com um; por isso, não tinha certeza de que ele me entenderia. Mas entendeu. Olhou seriamente para mim e falou:

— Eu estou infeliz. E minha infelicidade é proporcional ao meu tamanho. Daí, pedi um gato. Quero que você me faça feliz.

Com meu reles conhecimento de gato, nunca soube que gigante tinha varinha de condão, nem que ela funcionava com palavras mágicas. Mas o gigante me convenceu que, se a Fada Madrinha tinha o bibidi-bobidi-bum, ele poderia ter o fá-fé-fi-fó-fu. Ainda assim, não entendi por que ele havia me chamado, pois eu não sabia em que poderia ajudar. Então, ele me mandou sentar numa caixinha de palito de dentes, que também era proporcional ao tamanho dele, e me explicou:

“Não tem coisa mais chata do que ficar no castelo, sem nada interessante para fazer. Sempre tem um momento em que o videogame perde a graça, que a televisão cai na mesmice e que o computador se torna cansativo. Aí, eu me sento no sofá e me emburro.

“De vez em quando, uma criada ou outra aparece para varrer o tapete ou espanar a poeira dos móveis. Dá uma raiva tremenda quando elas param o que estão fazendo para olhar minha cara e perguntar o que está acontecendo.

“— Gigante Everest, por que está mal-humorado? — dizem.

“— Mal-humorada é a vovozinha! — digo.

“Realmente a Vovó Himalaia tem um humor péssimo, que nem o Vovô Corcovado aguenta. Mesmo assim, era fato que nada mais me fazia sorrir, tanto que acabei sendo apelidado aqui, no reino, de senhor desensorrisado.

“Saber que as pessoas me chamavam daquele jeito só fazia com que meu mau humor aumentasse. Tomei, portanto, uma decisão: iria rir, mesmo que não encontrasse motivo para isso.

“— Ou rirei como uma peste, ou não me chamo Gigante Everest!

“A fala deu até rima! Fui para diante do espelho e fiquei olhando para mim e tentando encontrar algo engraçado. Fiz careta: subi a sobrancelha, entortei os olhos e pus a língua pra fora. Não funcionou. Fiz outra careta, mas o espelho caiu na gargalhada — eu me irritei e o joguei no chão.

“Nem me importei com os famosos sete anos de azar; eu já estava tão mal-humorado que um pouco de má sorte não seria nada absurdo.”

Pessoas felizes podem até falar bastante, mas gente amargurada consegue tecer discursos enormes. Ou talvez isso fosse próprio do gigante, que tinha tudo grande, até a fala! O fato é que minhas orelhas de gato estavam cansadas de tanto blá-blá-blá e resolvi meter o focinho e interromper o pensamento.

— E por que você não pediu para a varinha mágica lhe dar um pouco de felicidade?

— A varinha me traz coisas materiais, mas não pode modificar os sentimentos. Por isso preciso que você me faça ficar rico! Se eu tiver ouro, serei mais feliz.

— Ainda não entendo. Como um gato de rua, pobre e morto de fome como eu, pode fazer com que você enriqueça?

Ele me olhou grosseiro e foi até o armário onde guardava os instrumentos musicais. Pegou uma harpa cor de prata, como se estivesse forrada por papel-alumínio, e me contou:

— Esta harpa prateada é mágica. Assim que ela tocar uma música, o animal que a ouvir passa a botar ovos de ouro.

— Mas não sou galinha e não boto ovo.

— A partir de agora, botará.

A harpa desenvolveu um rosto e braços. Bocejou, espreguiçou-se, abriu os olhos, esticou os braços para trás e começou a tocar. Era uma canção medieval, tipo dessas que aparecem em filmes de reis e rainhas. Mal tive tempo de prestar atenção na música e senti um enjoo, como se algo pesasse no meu estômago. A ânsia foi aumentando, e eu não consegui segurar: fiz força de vômito e golfei um ovo de diamante.

— Ué, isso é diamante! — eu disse. — Você não falou que os ovos seriam de ouro?

— Ah, é que estou acostumado com gansos! É a primeira vez que faço experiência com um gato. Da vez que fiz com coelho, saiu um ovo de chocolate.

Finalmente, alguém me explicou como é que surgem os ovos de Páscoa.

Enquanto eu me recuperava do fato de ter botado um ovo, Everest juntava o pedaço de diamante, que para ele não passava de uma bolinha de gude, e guardava no bolso. 

— Estranho! Não funcionou. Fiquei um pouco mais rico e, mesmo assim, continuo infeliz.

O gigante se chateou ainda mais e foi olhar através da janela do castelo. Resolvi que não podia ficar parado: escalei o corpo dele e me sentei em seu ombro esquerdo, como se fosse um papagaio no ombro de um pirata. Quis saber o que ele estava vendo, e ele me apontou para baixo.

— Veja lá na terra: todo mundo está correndo e se divertindo; só há alegria! E aqui em cima é tudo tão triste.

De lá das nuvens, as pessoas pareciam formiguinhas: os adultos eram saúvas, e as crianças eram operárias, difíceis de enxergar. Se bem que as formigas operárias trabalham, carregando as folhas para o formigueiro, e as crianças apenas brincam, carregando a bola até o campo de futebol.

Everest comentou que queria fazer uma visita a terra e descobrir qual era a origem da felicidade, para colher um pouco para si. Mas suspirou descrente, pois não sabia como fazer para chegar até lá. Então, dei uma sugestão:

— Por que você não usa sua varinha e pede para nascer um pé de feijão, daqui do céu até a terra? Aí, é só descer por ele.

— Pé de feijão? Mas pé de feijão cresce para cima! Se vai ser para baixo, é melhor pé de mandioca, não?

A análise dele fez sentido. Concordei com um ronronar, e ele balançou a varinha, dizendo as palavras mágicas:

— Fá, Fé, Fi, Fó, Fu! Quero que cresça um pé de mandioca, que vai desta nuvem até o chão.

No fim das palavras, a nuvem vibrou e pudemos perceber que uma saliência brotou na parte de baixo. Rapidamente, como um vegetal que foi regado com adubo a jato, as raízes se desenvolveram, com casca marrom e grossa, cheia de saliências, e se esticou até o pasto de uma fazenda.

Continuei no ombro de Everest, enquanto ele descia aquele tronco, como se fosse uma parede de escalada. Por ser gigante, não demorou muito a colocar os pés na grama e quase aterrissar em cima de uma vaca. A primeira atitude de Everest foi arrancar um pouco do mato e colocar na boca. Na primeira mastigada, cuspiu tudo.

— Essa nuvem de vocês tem um gosto horrível! Prefiro a do meu reino, que é feita de algodão-doce.

Enquanto eu explicava que ninguém comia capim — exceto as vacas e outros animais herbívoros, que pareciam se deliciar —, um garoto, que vinha correndo, tropeçou no mindinho do gigante. O grande homem pegou o menino na palma da mão e o levantou para perto do rosto. O menino não mostrava estar assustado, mas dava risada e arregalava os olhos por ver uma criatura fantástica tão de perto.

— Uau! Você é mais alto que o papai.

— E você parece um feijão. Vou chamá-lo de Feijão.

O gigante levantou o garoto pela camiseta e percebeu que os pés de Feijão estavam sujos e descalços. Viu que as calças também já estavam rasgadas e a camiseta não era de tecido muito bom.

— Por que você usa roupas tão velhas? E onde estão seus sapatos?

— Meus pais são pobres. Mal temos com que nos alimentar. A gente vive nessa fazenda, mas é como empregado. E o patrão não deixa nem a gente beber o leite das vacas.

Everest fez cara de confuso; disse que não entendia como um moleque paupérrimo como Feijão podia ser feliz, sendo que, mesmo com todo dinheiro do mundo e uma varinha mágica, ele não conseguia mostrar um sorriso sequer.

— Eu amo o papai e a mamãe. E também amo o campo e amo a vaca. Gosto de tudo que vive comigo, e isso basta para eu achar a vida boa. E você, não ama esse seu gato?

O gigante franziu a testa e voltou o menino ao chão. Então me pegou pelo rabo e me arrancou do ombro dele. Emburrou mais uma vez e começou a revirar os bolsos. Tirou o ovo de diamante que havia guardado e entregou a Feijão.

— Que ovo esquisito! Será que vai nascer um pintinho de vidro?

O garoto saiu correndo com o ovo nas mãos, chamando pela mãe e dizendo que iam ter que forrar o galinheiro com almofadas, para que, se algum pintinho de vidro caísse do poleiro, não quebrasse. Everest via o menino correndo pelo campo e achou engraçado o fato de ser tão inocente.

— Fá, Fé, Fi, Fó, Fu! Quero amar o campo e amar a vaca. O reino acima das nuvens ficará bem sem a minha presença.

Dito isso, a varinha de condão desapareceu, e o gigante foi ficando marrom, da cor da mandioca, e se estendendo para os lados. Em poucos segundos, ele havia se tornado uma montanha. Como não sabia o que fazer, acabei indo embora; mas, algum tempo depois, ouvi comentários sobre uma montanha que levava até o céu. Fiquei sabendo que ninguém havia conseguido escalá-la até o topo, mas alguns alpinistas juravam que a ouviam rir.

sábado, 11 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Alguma coisa sobre pneu



É só você acreditar
Que uma nova estrela vai poder brilhar
ROUGE, Nunca deixe de sonhar.

Eu estava revirando uma lata de lixo, e apenas meu rabo estava para fora, quando ouvi um rosnado. Parei com uma espinha de peixe na boca para ouvir melhor. Os rosnados aumentaram e pareciam vir de três gargantas diferentes. Resolvi sair devagar da lixeira e dei de cara com três rottweilers prontos para atacar. Não tive tempo de pensar em nada; apenas ericei o pelo, dei um miado esganado e larguei na pole-position.

O pôr do sol me deu forças para incorporar um praticante de parkour, com saltos quase quilométricos — até que me encurralei em um beco. Arregacei as unhas para escalar a parede, tijolo por tijolo, e dei dois mortais para cair do outro lado do muro. Vi uma janela aberta e nem me perguntei de onde poderia ser: lancei meu corpo para dentro, de uma forma que causaria inveja até mesmo à Mulher Gato.

— Veja, tia-que-dá-remédio! É um miau.

Olhei para a menina, na cama, com um sorriso apagado no rostinho doente, e também para a mulher, toda de branco e com chapeuzinho de enfermeira. De tantas janelas para pular para dentro, tive a petulância de atravessar a de um quarto de hospital. A enfermeira ficou tão desesperada que apertava descontroladamente o botão para chamar ajuda, enquanto disparava:

— Meu Deus! De onde essa coisa veio, Glorinha? Tem que sair rápido, antes que faça algum mal a você.

— Mas, tia-que-dá-remédio, ele tá dodói também, no olhinho. Ele tem que ficar comigo.

A menina era bem menininha ainda, mas tossia tão forte que até pareciam os latidos dos rottweilers. A enfermeira falava mais alto que a tosse da menina e chamou tanto por socorro que, logo, chegou mais uma enfermeira, outra enfermeira, o segurança do hospital, o médico, a mãe da menina e um paciente que estava no quarto ao lado.

— Eu pego pela barriga!

— Eu seguro as patas, para ele não arranhar.

— Eu tapo o focinho, para ele não morder.

Todo mundo elaborava uma estratégia maluca para me tirar dali — mas bastava que pedissem, e eu sairia. Mesmo assim, esperei para ver o que fariam. Quando uma enfermeira veio de um lado e o segurança veio de outro, a menina berrou, entre as tossidas:

— Parem! Ele é bonzinho. Vejam como balança o rabão.

A mãe e o médico se aproximaram da garota e tentaram fazê-la entender que hospital não é lugar de bicho, que eu poderia estar doente de verdade e que precisaria de um veterinário. Prometeram que me levariam ao veterinário. Mas a menina estava decidida a não me dizer adeus naquele momento.

— Tio-que-ouve-o-coração, lembra que você disse que eu ia dormir bastantão hoje à noite? E mamãe, lembra que você disse que eu podia pedir o que quisesse até o fim do dia? Eu quero o miau.

O médico respirou fundo, e a mãe abraçou a menina para chorar um pouquinho. Todo mundo meio que lacrimejou e entraram no acordo de que o pedido da menina tinha que ser realizado, independente das proibições do hospital. Eu estava com medo dos rottweilers que me esperavam do lado de fora, então, aceitei ficar.

Quando todo mundo saiu, a menina foi para perto da janela, pediu para que eu subisse na cama também, fungou o nariz e me disse:

— Tá vendo aquela estrela? A segunda à direita? Eu disse pra ela que queria um miau, e ela me respondeu, assim, com brilho de estrela, que tava tudo bem. Daí você apareceu.

A menina olhava para a janela como se as estrelas e a Lua fizessem parte de uma família, e isso ficou esclarecido quando ela me contou:

— Sabia que é lá que vou morar quando acordar, depois de dormir bastantão? Foi o tio-que-ouve-o-coração que disse.

— Mas por que é que você vai “dormir bastantão”?

— Eu não sei muito bem... — tosse, tosse, tosse — Mas ouvi quando ele disse pra tia-que-dá-remédio alguma coisa sobre pneu. Ele é bobinho e acha que sou um vrum-vrum.

O sono abriu a boca de Glorinha, que se deitou. Eu também já estava meio cansado de tanto ter corrido, que me encostei ao lado dela. Ela foi fechando os olhos bem devagarinho e começou a ficar com frio. Arrastei o cobertor com a boca para cobri-la, mas parecia que ela já estava dormindo e que era o sono de “dormir bastantão”, que ela falava.

Para não atrapalhar, resolvi ir embora. Vi que a segunda estrela à direita brilhava ainda mais e caminhei tranquilamente, olhando para o céu. Só percebi que estava totalmente distraído quando me esbarrei em patas que não eram minhas. Os dentes afiados do rottweiller sorriram para mim, e isso resultou em um desmaio de gato.

***

Não há nada mais incômodo do que quando estamos dormindo e ficam cochichando na nossa orelha. Eu fazia um esforço felino para abrir os olhos, enquanto ouvia um zum-zum-zum do tipo: “Olha que diferente!”, “Será que anda?”, “Será que voa?”, “Será que morde?” Quando consegui levantar as pálpebras, um punhado de estrelas se assustou, gritou e saiu aos trotes. Uma delas ainda deu voz de comando:

— Corram, antes que ele nos machuque!

— Não vou machucá-las! — eu disse. — Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

— Um gato? Já ouvi falar em gatos, mas sempre achei que não passasse de contos de fadas — uma estrela comprida disse.

Senti que eu não estava no meu estágio normal; era confusão demais para uma mente de gato desvencilhar. Primeiro, eu estava fugindo dos cachorros; depois, fui brevemente adotado por uma garotinha doente; daí, voltei para a rua e encontrei novamente os cachorros; então, do nada, acordei na Lua, cercado de estrelas que não sabiam o que era um gato.

— Vocês nunca viram um gato antes?

— Não! Não é muito normal aparecer bicho por aqui. O último que vimos foi uma cadela chamada Laika, mas já faz muito tempo.

Alguém já havia comentado dessa tal de Laika comigo, que ela era conhecida por ser o primeiro ser vivo a entrar em uma astronave e ir ao espaço. Mas, como ela era uma cachorra, não quis nem saber muito da história. Queria mesmo era entender o que eu estava fazendo no céu e por que as estrelas estavam tão agitadas.

— Alguma de vocês sabe como vim parar aqui?

— Meu nome é Janaína — uma delas disse.

De repente, todas as outras começaram a se apresentar — Raul! Geórgia! Afonso! Ernestina! Claudete! — e, assim, mudaram de assunto. Com tanto nome vagando na minha cabeça, não aguentei e dei um miado bem esculachado. Todas se calaram, e eu repeti a pergunta.

— Como é que vim parar aqui?

— Quando as pessoas terminam a vida delas na Terra, elas sobem aqui no céu, onde se transformam em estrelas — uma estrela chamada Diana disse. — Agora, o que um gato faz aqui é mistério até para nós. Talvez seja porque você tem alma de humano.

Senti o calorzinho de um cometa que passou ali perto e fiquei pensando se algum deles viria até a Terra para me trazer de volta. Mas não havia rodoviária, e isso me fez concluir que eu teria que passar mais um tempo lá.

— E a Glorinha? — eu disse. — Ela está bem?

— A menina que veio um pouco antes de você? Ela está bem ali.

A estrela apontou para um pedaço da Lua, onde a menina dançava e pulava amarelinha. Quis me aproximar, e ela logo me viu.

— Miau, viu só que bacana? Aquele pneu que o tio-que-ouve-o-coração disse que eu tinha... devia ser pneu de foguete.

Ela começou a dançar, sem tosse nem nariz escorrendo. Fiquei feliz por vê-la curada e, assim que ela saiu rodopiando, perguntei à Janaína (ou talvez fosse Amélia, ou Gislaine, ou Alessandra) por que Glorinha ainda não havia se tornado uma estrela.

— Ela precisa fazer alguma coisa muito boa para virar estrela.

— E como ela fará isso?

— É só ela desejar. O espaço cósmico, que vai desde a segunda estrela à direita e depois sempre em frente até de manhã, é mágico. É só ela desejar, que tudo se realiza.

Fui contar a novidade para a menina, enquanto ela provava um pedaço da Lua, para saber se realmente era de queijo. Ela me respondeu que já virava estrela e me mostrou, dando uma cambalhota. De repente, apareceu uma estrela grande e brilhantíssima, que iluminou os cabelos escuros de Glorinha.

— Glória, jovem menina, seja bem-vinda! Sou a Estrela-Guia, mãe de todas as estrelas e filha do Sol.

— Você também é mãe da estrela-do-mar?

— Apenas das do céu, querida. E você, em breve, será uma de nós. Mas, para isso, precisa fazer uma coisa boa. Basta dizer o que quer e, se as forças cósmicas considerarem uma boa feita, você será transformada.

A menina gostou da ideia e disse que queria brincar. Explicaram que não era uma brincadeira, mas tudo para ela se resumia em diversão.

— Bem, vejamos... Todo mundo aqui poderia falar rimado! Seria uma coisa boa, todos falando que nem música, não seria?

A Estrela-Guia deu uma rodopiada, piscou três vezes e consentiu. Quando uma das estrelas foi perguntar se havia dado certo, a fala saiu em versos:

“Eu, que ouvi o pedido bem de perto
Fiquei na dúvida para saber se deu certo.”

Nisso, outra estrela respondeu:

“Deu mesmo. Que gozado!
Tá todo mundo falando rimado.”

Mas a Estrela-Guia lamentou:

“Infelizmente, esse seu desejo não foi suficiente.
Você não virou estrela e continua sendo gente.”

A menina pensou, pensou e decidiu tentar outra vez:

“Mas eu não me darei por vencida!
Quero que todas as estrelas fiquem coloridas.”

A Estrela-Guia deu uma rodopiada, piscou três vezes e consentiu. O céu ficou parecendo um manto de confetes, com cada estrela de uma cor: estrela bege, estrela verde, estrela vermelha e até estrela cor-de-laranja com bolinhas azuis! Mas a Glorinha continuava menina. A Estrela-Guia repetiu o desabafo:

“Esse seu desejo também não foi suficiente.
Você não virou estrela e continua sendo gente.”

Glorinha não desistiu e tentou de novo. Dessa vez, deixou que os sentimentos falassem por si:

“Neste céu, a gente brinca e a gente dança,
E o miau está aqui, mas tem muito bom coração.
Quero que ele faça bem a mais uma criança;
Por isso, merece voltar, para balançar o rabão.”

A Estrela-Guia deu uma rodopiada, piscou três vezes e consentiu. Chegou para mim e disse:

“Pule no próximo meteorito que passar.
Ele vai cair no seu planeta, em algum lugar.”

Rocei a cabeça nas pernas de Glorinha e recebi um cafuné da garota, em sinal de despedida. Miei para as demais estrelas, que balançaram a ponta direita, para dar tchau. Saltei no meteorito e fiz uma viagem de volta para o lugar de onde vim. Quando aterrissei e olhei para o céu, a segunda estrela à direita da Lua havia recebido uma amiga, pequenininha, cor-de-rosa bem claro, mas muito iluminada.

“Miau, Glorinha!
Descanse em paz, menininha.”

sábado, 4 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Cabeça de papel e coração de lantejoulas



Todo mundo tem um primeiro namorado.
Só a bailarina que não tem.
CHICO BUARQUE, Ciranda da Bailarina.

Os cachorros são animais tão idiotas que, quando veem um carro passar, tratam de correr atrás. Uma vez, cheguei a perguntar para um vira-lata manso qual é o motivo de eles fazerem isso. Ele me respondeu que é o mesmo motivo pelo qual eu me sinto atraído por novelos de lãs e pelo qual a boca das crianças se enche de água quando elas olham para um pedaço de bolo. É um impulso sem explicação.

Mas já reparei que há um carro que eles nunca seguem: o caminhão de gás. Como um gato de rua que já presenciou as histórias mais imprevisíveis, entendo que esse silêncio é uma amostra do respeito que eles têm. Não respeito pelo motorista, nem pela empresa de gás, mas pela musiquinha que é tocada.

Ouvi o tananam pela primeira vez muito antes de os vendedores de gás a utilizarem em seus caminhões. Faz bastante tempo, da época em que eu ainda era filhote e estava me acostumando a enxergar com um olho só. Essa música foi usada no samba-enredo de um Carnaval do qual eu jamais me esquecerei.

Falavam tanto dessa festa noturna cheia de gingado e tamborins, que resolvi participar da folia. Cheguei com antecedência e fiquei no pátio externo do sambódromo. Como eu era apenas um gato, não tinham por que me impedir de ficar naquele espaço; assim, pude conhecer os acessórios carnavalescos antes mesmo de os portões se abrirem.

As alas de todas as escolas de samba ficavam naquele espaço, que diziam ser a concentração. Era arlequim para um lado; colombina para outro e um pierrô interferindo no romance. No meio de tudo, ficavam os carros alegóricos. Imaginei como seria um engarrafamento na marginal com carros enfeitados como aqueles.

Deixei os pensamentos bobos de lado e vi que, no espaço destinado à escola de samba que homenagearia as artes, havia um carro-bailarina. Certamente era o mais bonito dentre todos e o que mais chamava atenção: era quadrado, como uma caixinha de música e, dentro, uma bailarina girava, com uma perna levantada e equilibrando-se na ponta do outro pé.

Cheguei perto para conferir os detalhes e notei que, na caixa, estava escrito “Elisa”. Confirmei que esse era o nome dela quando o carro-pintor e o carro-escritor passaram ao lado e desejaram um bom desfile a ela. (Não, não imaginei o que eles queriam dizer; escutei o que foi conversado! Carro alegórico também fala, mas há tanto barulho em dia de carnaval, que ninguém ouve a voz dos coitados — apenas os gatos, que têm a audição sensível.)

— Quebre a perna! — um deles disse.

— Mas tadinha! Sem a perna, ela não desfila — o outro disse.

— Calma, seu bobo, é só um jeito de desejar boa sorte, antes da apresentação.

Evitei uma risada felina e saltei para ver os outros carros. Havia um carro-onça, na escola de samba que homenagearia os animais; um carro-sereia, na do folclore; e um carro-banana, na das frutas. Mas o que me chamou muito a atenção foi o carro-soldado, que pertencia à ala do exército, em homenagem às forças armadas brasileiras.

O carro-soldado tinha a cabeça feita de papelão, e o corpo era coberto com mantas de chumbo, mas não tinha um nome tão estiloso gravado no peito: era João, simples assim. Não era vestido com o uniforme verde tradicional, mas tinha várias cores em sua roupagem. O colorido lhe dava um ar de beleza e felicidade. Por parecer um arco-íris, alguns se arriscavam a chamá-lo João do Arco.

— Do Arco, esteja apresentável para nosso desfile!

— Às suas ordens, carro-capitão!

Enquanto colocavam as últimas lantejoulas nos botões de sua calça, João esquivou o olhar e avistou, lá longe, o rosto de Elisa. Não conseguiu ver mais do que a região que vai do coque do cabelo ao colarinho do vestido, mas soube que aquele era o carro mais alegórico que já havia visto.

— Os pneuzinhos dela são um charme, não são? — o carro-marinheiro disse.

João preferiu ficar quieto; as bochechas ficaram cor-de-rosa e nem foi preciso salpicar purpurina; o motor bateu mais forte e provocou uma explosão interna de confetes. Elisa havia conquistado nota 10 em todos os quesitos, segundo os sentimentos do soldadinho.

A alguns metros dali, na escola de samba que homenagearia a magia, o carro-feiticeiro assistia à cena de timidez de João e percebeu o olhar apaixonado. Veio em tão alta velocidade que quase me atropelou. Colou no carro-soldado e foi bem direto nas palavras:

— Nem se atreva, Do Arco! Ela já é comprometida. Há tempos, buzinamos um para o outro.

— Mas eu...

— Quebre a perna!

Numa arrancada violenta, o carro-feiticeiro bateu no carro-soldado e arrancou, com toda força, uma das pernas de João. No chão, ficaram apenas os destroços de chumbo, lantejoulas e todos os outros acessórios necessários para confeccionar um objeto carnavalesco.

O susto foi grande em quem viu a cena: os queixos de alguns se descolaram, os cabelos de outros caíram e meu único olho ficou arregalado ao máximo. A vilania do carro-feiticeiro fez com que o soldadinho derramasse uma lágrima de cola e decidisse que não iria mais desfilar.

Tristeza e carnaval não combinam, e o destino sabe disso. Enquanto João se lamentava cabisbaixo, Elisa passou ao lado dele, girando e tocando o tananam de música clássica. João levantou a cabeça a tempo de vê-la se posicionar numa vaga da frente e sorriu.

— Vejam! Ela só tem uma perna e ainda assim vai desfilar.

Ninguém se atreveu a contar a ele que a outra perna da bailarina estava levantada e não podia ser vista. Preferiram manter o alto-astral do soldadinho. Ele se animou tanto que foi até ela e estacionou ao lado, não tão perto, mas perto o suficiente para que o coração festejasse soltando serpentina.

— Carro-bailarina, eu...

— Carro-soldado, eu...

Eles não precisavam nem se falar, pois se entendiam sem dizer uma única palavra. Cornetas soavam na mente oca de João, e borboletas dançavam balé onde deveria ser o estômago de Elisa. O carro-feiticeiro viu a alegria dos dois, ligou o motor e se enfiou no meio, ralando nas laterais. Quis intimidar o carro-soldado:

— Marche, soldado, cabeça de papel! Se não marchar direito, vai preso pro quartel.

Antes que um dos dois pudesse dizer algo, um alarme tocou: era o sinal de que o desfile começaria e que a escola de samba de Elisa seria a primeira. Corri para a arquibancada e fiquei embaixo de um dos bancos. Mesmo com um olho só, conseguia visualizar o começo do desfile e os carros se preparando para entrar.

Enquanto as alas sobre arte sambavam e expunham a coreografia que haviam preparado para a apresentação, o carro-soldado ficou no portão, admirando cada centímetro que o carro-bailarina avançava. Ele não percebeu o carro-feiticeiro se aproximar e cuspir nele algumas gotas de gasolina, na região das costas.

O clima era de muita algazarra no sambódromo: os pandeiros eram estapeados e gritavam de dor, os tambores eram batucados e reclamavam dos cutucões, e a garganta do intérprete latejava de tanto cantar. De repente, houve um silêncio total. Ouviu-se somente a melodia clássica. A canção de Elisa fez todo mundo parar o que está fazendo e prestar atenção na novidade.

Após alguns minutos de desfile, a escola atravessou a avenida e os carros foram para o pátio que ficava na saída. A próxima escola que entrou foi a da magia, com o carro-feiticeiro, todo pomposo e mal-encarado. Vieram outras escolas em seguida e, por último, quando o dia já estava quase amanhecendo, o carro-soldado entrou em cena.

Como era a última escola, resolvi acompanhá-la, andando por baixo dos bancos, até o portão de chegada. Quando João cruzou a linha final, o farol bateu no que não devia ser iluminado: o carro-bailarina descansava sua beleza ao lado do carro-feiticeiro, que também dormia.

O soldadinho decidiu ir para o outro canto do estacionamento e derramou mais algumas gotas de cola. As pessoas já se preparavam para ir embora, mas eu decidi ficar um pouco mais. Passei entre as grades da cerca e fui falar com o João. Quando me viu, ele se assustou e fez um desabafo.

— Servir de cama para um gato de rua era só o que me faltava! Além de ter tido a perna e o coração arrancados, ainda ficarei cheirando a xixi de gato.

— Calma, amigo! Eu não tenho essa intenção, não. Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

Disse que já sabia o que se passava e, também, que entendia a aflição dele.

— Ela é a colombina, e você é o arlequim. Ambos estão apaixonados um pelo outro. Mas um pierrô doente de ciúmes quer distanciar vocês dois, em nome da autossatisfação.

Ele dormiu com a minha falação, e eu resolvi ir embora. Já estava com as duas patas dianteiras para fora do sambódromo, quando percebi uma luz se acendendo em meio à escuridão. Olhei para trás e vi que o carro-feiticeiro estava acordado. Ele ligou o motor bem baixo e foi em direção ao carro-soldado.

Pensei que fosse apenas meu sono criando algum tipo de miragem, mas meu único olho enxergava muito bem e viu quando o carro-feiticeiro rangeu vingativo e acendeu um palito de fósforo que fazia parte de seu enfeite.

Sem ter sido contagiado pela alegria do carnaval, ele atirou a chama nas costas do soldadinho, onde anteriormente havia jogado gasolina, e ainda sussurrou:

— Quartel pegou fogo. Do Arco se deu mal!

Dei um miado tão desesperador que o carro-bailarina acordou. O carro-feiticeiro estava se aproximando dela, para entrelaçar suas rodas, mas Elisa o rejeitou, com batidas nervosas, a ponto de amassar uma das arestas da lataria quadrada.

O carro-feiticeiro ficou tão irritado que disparou para fora do estacionamento, e o carro-bailarina se aproximou do carro-soldado a tempo de ver as folhas de chumbo se derretendo e o papelão virando cinzas.

Sem ter como controlar o fogo, Elisa começou a tocar sua música clássica, como marca de despedida. No entanto, o gás, que era o combustível que fazia a bailarina girar, acabou se espalhando e provocou uma explosão.

Os holofotes se acenderam, e os seguranças do sambódromo apareceram, mas os carros, àquela altura, já haviam se queimado totalmente. No chão, restou apenas um coração de lantejoulas carbonizadas.