sábado, 28 de abril de 2012

O leite que bebeu o gato



É o fazendeiro que trata a terra que abriga o pasto que contém a grama que alimenta a vaca que dá o leite que o gato bebe. Um está subordinado ao outro, e sempre desta forma, para que, no final, o bigode do gato fique com um bigode de leite. Ainda nessa metáfora felina, afirmo que me senti um bichano desmamado no fim de semana passado.

Meus pais viajaram e deixaram duzentos e cinquenta metros quadrados para eu tomar conta. Na verdade, foi o espaço que tomou conta de mim: aquele vazio extenso animava meu tédio e me obrigou a ficar deitado a tarde de sábado, assistindo programa ruim na televisão por pura preguiça de mudar o canal.

Então, a energia elétrica acabou. De certo, ela havia se cansado de ficar naquela chatice e me largou sozinho, com a enfadonha tarefa de ter que levantar para abrir a janela do quarto, se quisesse. Quando fiz isso, o jardim, no quintal, sorriu para mim. Sorri de volta, e ele, com um vento, balançou uma árvore que parecia me chamar com seus galhos.

Resolvi sair do ninho e adentrar o matagal. Descobri um lago, ali, dentro da minha própria moradia, um sinal de como eu mal conhecia minha casa e, consequentemente, como eu mal me conhecia. No lago não havia patos, nem vitórias-régias, nem nada muito ousado que um lago costuma ter. Havia, somente, uma ponte. Dessas de madeira, feitas já com a intenção de atrair umidade e cupim.

Se levava para Terabítia, para Pasárgada ou para lugar nenhum, eu não sabia, mas estava empolgado para descobrir. Subi na ponte e comecei a caminhar. Era longa e escondia de mim o seu final. Pulei um caramujo, desviei de um marimbondo e tive medo de que aquele negócio desabasse; mas segui em frente.

Quanto mais andava, mais tinha vontade voltar para casa, me trancar no quarto e dormir para sempre. Era tão comprida que superava a Rio-Niterói e a São Francisco. Chegou um momento em que eu já não sabia se deveria continuar até o outro lado ou voltar. Pedi para a ponte apontar uma ponta. Inventei um trava língua, mas continuei inseguro.

Optei por parar. Tomei fôlego por um tempo até que resolvi olhar para as laterais. Encontrei um garoto nadando sem roupa no lago. Parecia comigo fisicamente, mas tinha mais coragem, mais desinibição. Talvez fosse um sósia. Dei um oi e ele me cumprimentou no mesmo instante. Os gestos eram simultâneos.

Aquela versão nua de mim representava tudo que eu tinha vontade de viver, mas mantinha morto em algum canto secreto dentro de mim. Percebi, portanto, que eu não precisava cruzar a ponte; podia criar novos caminhos, saltando naquele lago e mergulhando até onde desse. Então, pulei da ponte e acordei submerso nas cobertas.

Levantei no ato e, quando percebi, já estava limpando o fogão ao som de uma canção sertaneja. Meus lábios cantarolavam “ai, se eu te pego” para a gordura que insistia em escapar do detergente. Meu cérebro agendava um programa, que não era de tevê, para mais tarde. Deixei de andar alienado em linha reta, sem desvios, e passei a olhar do parapeito da ponte. O leite havia bebido o gato.