sábado, 28 de julho de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: O urso que não era de pelúcia



A escuridão não interpreta palavras,
Mas as paredes absorvem os gritos.
DRAMA, Boneca de Pano.

Imagino como seria um gato, feito eu, usando uma peruca loira de cachinhos. Talvez ficasse parecendo uma princesa dos contos de fadas ou, quem sabe, uma apresentadora de programa infantil da atualidade. Talvez eu ficasse bastante estranho, já que cabelo de gato, para não ser estranho, precisa ser da cor do pelo.

Penso a respeito disso porque quase pertenci a uma família onde todo mundo tinha cachinhos dourados. Na verdade, entrei em uma casinha de palha, achando que ninguém morava lá. Mas, quando já estava dentro, percebi que havia móveis nos cômodos e comida na mesa.

Ouvi um resmungo vindo do estômago e percebi que era melhor aproveitar os quitutes que estavam por ali. Num salto estiloso, subi na mesa. No primeiro prato, havia mingau: era mole demais e estava muito quente. No segundo prato, havia uma rapadura: era muito dura e estava fria demais. Mas, no terceiro prato, havia um pão de ló com cobertura de morango: perfeito, na maciez e na temperatura.

Enquanto eu tirava alguns bocados daquela guloseima, a maçaneta girou e a porta se abriu. Três mulheres haviam chegado, todas as três de cabelos cacheados e loiros. Aquela era a casa das Cachinhos Dourados!

As Cachinhos Dourados eram conhecidas: a mais velha se chamava Sara e sempre levava mingau para as crianças do orfanato; a do meio se chamava Sarali e vendia rapadura na porta das casas; e a mais nova se chamava Saralinda e era querida por ser tão meiga. Elas eram avó, mãe e filha.

Quando me viram, Saralinda sorriu e achou tudo muito engraçado; Sarali deu um berro tão assustado que um pedaço do teto até desabou; e Sara foi correndo pegar a vassoura para me expulsar a pauladas.

— Não atire o pau no gato, vovó! — Saralinda disse.

— Isso mesmo — eu falei. — Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

Explicação de gato é em vão para os adultos. Gente grande não entende língua de gato, da mesma forma que gente pequena custa para entender língua de gente grande. Mas a menina me ouviu, porque gente pequena tem o dom de entender os animais. Ela correu e deu um abraço em mim. Esse gesto fez a avó guardar a vassoura e a mãe parar de gritar.

— Podemos ficar com o gato, mamãe? — ela dizia. — Podemos?

— Mas esse bicho é cego! Ponha pra fora, ponha?

A menina ficou triste e baixou os olhos.

— Mamãe, se eu fico cega, você não me ama mais?

A menina olhou para a mãe, a mãe olhou para a avó, e a avó, que não tinha mais para quem olhar, fez que sim com a cabeça para dizer que eu poderia ficar. Por um estalo de segundo, meu coração bateu forte; eu tinha uma nova família.

Fomos para o quarto, onde fiquei sentado no colo da menina, enquanto ela me contava quem era, onde estudava, o que gostava de fazer e qual era o membro mais bonito da banda de rock que ela gostava. Depois de tudo, quis saber meu nome.

— Eu não tenho um nome — falei.

— Mas todo mundo precisa de um nome. Vou chamar você de Sr. Gato.

A menina pegou uma boneca de pano que estava em cima do travesseiro e nos apresentou.

— Sr. Gato, esta é a Inocência. Inocência, este é o Sr. Gato.

A Inocência também tinha cachinhos dourados, como todas as mulheres da família. Ela usava um vestido branco e me olhava com carinho. Gato também entende língua de brinquedo, e ela me disse, com a linha que formava sua boca, que havia gostado de mim.

O dia virou noite e, em poucas horas, voltou a ser dia. Saralinda acordou para ir à escola, Sarali pegou a cesta com rapaduras para vender, e Sara pegou um machado para cortar lenha. Dessa vez, resolvi acompanhar Sara na floresta.

O machado batia no tronco da árvore umas seis vezes, para que ela caísse. Depois, era só cortar a madeira em pequenos pedaços, para caber no fogão. De repente, ouvimos um barulho. Meu rabo comprido ficou de pé, e os cachinhos de Sara até arrepiaram. Um urso apareceu.

O urso tentou explicar por que estava ali: só queria brincar! Mas gente grande não entende língua de urso, e a vovó ameaçou bater nele com o machado. Ele voltou para a floresta, e nós voltamos para casa.

Não demorou muito, e Saralinda chegou da escola. Tirou os sapatos, jogou a mochila num canto e pulou na cama. Veio me contar como foi o dia.

— O Paulinho disse hoje que o Papai Noel, na verdade, é o pai da gente. Será que é por isso que não tenho um pai? Ele está no Polo Norte, fazendo presentes para todas as crianças do mundo?

Eu não sabia o que responder e preferi dar um miado preguiçoso. Saralinda coçou minha barriga. A Inocência assistia à cena e sorria.

Mais uma vez, o Sol foi embora, para a Lua e as outras estrelas poderem aparecer; mas logo ele voltou e escondeu todas elas. Nesse novo dia, resolvi acompanhar Sarali, na venda de rapaduras.

Para chegar ao outro lado da cidade, pegamos um atalho na floresta. A cesta de Sarali parecia pesada, mas a tranquilidade no rosto dela mostrava o contrário. De repente, ouvimos um barulho, que era o mesmo do dia anterior. O urso apareceu e disse que só queria brincar, mas Sarali se assustou e deu um berro que quase deixou todo mundo surdo. O urso foi embora.

Quando voltamos para casa, Saralinda já estava lá, fazendo tranças na boneca. Quando me viu, me pegou no colo e começou a contar:

— A Cicinha disse hoje que Bicho Papão não existe, que é só o medo que a mãe da gente coloca, pra gente não fazer malcriação e nem ficar acordada até tarde. Mas, se a mãe só quer o bem, ela não ia inventar essas coisas que dão medo, não é mesmo?

Decidi não responder nada e rocei o corpo nas pernas dela. Saralinda achou fofo e foi buscar uma tigela de leite pra mim. A Inocência mantinha o brilho dos cabelos.

O céu escureceu, mas logo voltou a clarear. Era sábado, e eu podia passar o dia inteiro com Saralinda. Ela queria brincar na floresta, mas a mãe disse não.

— Tem um urso muito perigoso circulando por aí. Melhor ficar em casa.

Mas foi só a mãe e a avó saírem que o dispositivo de obedecer às regras se desligou. Saralinda pegou Inocência, pegou uma bola que estava em cima do guarda-roupa e me chamou para ir junto. Não concordei com a saída sem permissão, mas eu era apenas um gato caolho do rabo comprido; não tinha que concordar com nada.

Na floresta, a menina jogava a bola para que eu pegasse, e eu empurrava para Inocência. A boneca era preguiçosa e não jogava de volta para a menina. De repente, ouvimos o mesmo barulho dos dias anteriores. Um urso apareceu, e Saralinda se assustou, mas ficou quietinha, parada, esperando o que ele tinha a dizer.

— Ei, garotinha! Posso brincar também?

— Não sei... Minha mãe não me deixa falar com estranhos.

— Mas menina crescida brinca com urso que não é de pelúcia.

A menina se lembrou do que a mãe havia dito, que o urso era perigoso, mas ele parecia tão carente. Não custava brincar um pouquinho.

— E qual é que é o seu nome? — Saralinda disse.

— O nome não importa. Você pode me chamar de Amigurso.

Eu não gostava daquela história de Saralinda ficar brincando com o Amigurso, porque nem o conhecia. Mas comecei a pensar que, já que Saralinda e Inocência haviam gostado tanto dele, eu é que estava sendo chato demais. Enquanto eles se divertiam, aproveitei para cochilar.

— Socorro! Socorro, Sr. Gato! Socorro!

A voz desesperada de Saralinda me fez acordar rapidamente e me colocar em posição de ataque, com o único olho arregalado e o longo rabo eriçado. O Amigurso já estava distante, carregando-a no colo e levando-a floresta adentro.

Resolvi usar minha agilidade felina para segui-los. No meio do caminho, encontrei a boneca, que provavelmente havia caído das mãos da menina. Não ia deixar que Saralinda perdesse a Inocência; peguei a boneca com a boca e continuei correndo atrás do urso mau.

Cheguei à frente de uma caverna e pude ouvir a voz de Saralinda lá dentro.

— Por favor, Amigurso, não me machuque. Prometo que não jogo mais a bola com tanta força.

Pude enxergá-los em frente de uma mesa cheia de flores. Ele resmungava:

— Agora, você é minha criada. Quero mel! Faça mel para mim.

— Mas, com tanta abelha na floresta, por que precisa que eu faça o mel?

— Porque mel de menina humana é mais gostoso.

Entrei escondido na caverna. Saralinda estava tirando o néctar das flores quando me viu.

— Sr. Gato, você veio! E me trouxe a Inocência de volta.

A menina pegou a boneca e arrumou-lhe os cabelos, que já não tinham mais brilho. Então, chorou de maneira soluçada. O urso ouviu o pranto e tentou agradar.

— Não chore, menininha! As lágrimas vão deixar o mel salgado.

A menina não escutava; continuava lavando o rosto com o líquido que saía dos olhos. O urso tirou um pirulito de morango do bolso e lhe entregou.

— Tome! Vai animar. Pirulito igual o meu, você não encontra em nenhum outro lugar.

Saralinda não queria pirulito; só queria voltar para casa. Mas a Inocência sussurrou algo no ouvido dela, e ela começou a chupar o doce. Tinha gosto de morango, mas era de um morango diferente dos morangos que já havia comido. Ela não gostava daquele gosto; mesmo assim, evitava a cara feia.

Eu queria um plano para tirá-la da caverna, mas não conseguia pensar em nada. O tempo passou e mais uma noite chegou. A menina já tinha feito muito mel e, agora, tremia de frio.

— Venha se deitar, menininha! — o urso disse. — Aproveite que meu pelo é quente e pode aquecer nós dois.

Enquanto Saralinda era abraçada pelo urso, abraçava Inocência. O urso não estava satisfeito em dividir a cama com a boneca e, com uma patada certeira, jogou-a no chão.

A menina deu um pulo e desceu para pegá-la. A patada havia arrancado um dos braços, rasgado parte do rosto e sujado o vestido branco. Uma lágrima quis ver a boneca de pertinho e saiu do olho de Saralinda, que pegou a pequena no colo e suspirou.

— Amigurso, você feriu minha Inocência.

Então, vi que não podia mais ficar parado. Saí em alta velocidade pela floresta e cheguei à casa das Cachinhos com a língua para fora. A avó e a mãe estavam bem tristes, lamentando pelo desaparecimento de Saralinda.

— Veja, Sarali! — a avó disse. — É o gato dela.

— Vamos, bichinho! — a mãe disse. — Diga onde é que a Saralinda está.

Fiz com que elas me seguissem até a caverna. Quando elas viram o animal, Sarali arrancou uma rapadura do bolso e a atirou bem na cabeça dele, e Sara usou um pedaço de madeira que havia por perto para expulsá-lo a pauladas. O urso fugiu.

Saralinda correu para os braços da mãe, numa cena comovente. Comecei a perguntar para ela se estava tudo bem, se ela tinha algum ferimento, se eu podia ajudar em mais alguma coisa. Mas ela parecia não entender nada além de alguns miados. Então, com os olhos ainda molhados, falou à sua mãe:

— Que gato feio, mamãe! Ponha pra fora, ponha?

Vi as Cachinhos Dourados tomando o caminho de volta para casa, até sumirem entre as folhagens. Do meu lado, a boneca estraçalhada era o sinal de que Saralinda havia perdido definitivamente a Inocência.

sábado, 21 de julho de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Seja minha namorisne, que serei seu patorado



Nunca pensei em um dia chegar e te ouvir dizer:
Não é por mal, mas vou te fazer chorar.
PATO FU, Canção pra você viver mais.

Topete de pato deveria se chamar topato. Sempre fico pensando que seria bem melhor se tudo que é relacionado a um bicho tivesse um nome que fizesse lembrar o do tal bicho. Assim, como sou um gato, levaria gatombos quando caísse, e minhas patas deixariam pegatas por onde passassem.

Mas estou me questionando do topato, ou melhor, do topete de pato, porque esses dias, enquanto tentava capturar alguns peixes com minhas unhas afiadas, vi um patinho olhando o próprio reflexo na água. Ele era bonito do topete à pata. Aliás, pata é um nome corretíssimo para dar aos pés do pato.

Fiquei escondido atrás de um arbusto, para vê-lo se admirar, como se fosse a joia mais preciosa do bosque. Não demorou muito, algumas patinhas passaram perto do rio. Estavam à procura de uma sombra, para fazerem um piquenique. Quando viram o patinho, não resistiram a tanta beleza e suspiraram:

— Ai, como eu gostaria que o Adônis fosse meu patorado!

— É... Não existe patinho no mundo mais bonito do que ele.

Minhas gatorelhas conseguem escutar a longa distância. Continuei prestando atenção ao que acontecia e ouvi quando elas o convidaram para o piquenique:

— Adônis! Ô, Adônis! Venha comer um sanduíche com a gente. Tem de alface com milho e tem de atum.

— Obrigado, meninas. Mas ficarei aqui, olhando para o rio. A água é uma excelente companhia, sabiam?

As patinhas se foram, e ele continuou com seu ritual. De repente, um cisne charmoso e delicado passou nadando perto dele; era uma fêmea cor-de-rosa que deslizava pela água com a elegância de uma bailarina.

Adônis se apaixonou pela ave à primeira vista. Não perdeu tempo e entrou na água para iniciar uma conversa com ela. Pensou em conquistá-la, contando-lhe uma piada.

— Ei, sabe o que o pato faz quando quer dar o fora em alguém?

— Não, o que ele faz?

— Dá uma patada.

Para a infelicidade de Adônis, ela não riu. Possivelmente, cisnes não entendam piadas sobre patos, bem como patos não entendem piadas sobre gansos. É a lei do humor animal! Gatos, sim, entendem sobre tudo um pouco. Talvez seja por causa do nosso bigode engraçado.

— Eu me chamo Adônis.

— E eu sou Cyz.

Cyz sabia que a intenção de Adônis não era unicamente agir como um comediante de stand up — ou, no caso, stand-uck. Pediu para que ele fosse direto ao assunto, que saísse do zero a zero, que desempatasse logo a conversa, que tomasse coragem para...

— Eu amo você! Quack! — ele disse. — Quer ser minha patorada?

— Adônis... Como posso ser sua patorada, se sou um cisne?

— Então, seja minha namorisne, que serei seu patorado. Sei que sou bonito e que todas as patinhas sonham comigo. Você também pode sonhar. O que preciso fazer para você me aceitar?

Cyz resolveu dar uma volta ao redor de Adônis. Olhou e analisou cada parte do seu corpato. Em seguida, respondeu à pergunta.

— Você é lindo, mas é muito fraquinho. Só aceitaria ter algo com você, se fosse um pouco mais forte.

Aquilo foi tudo que Adônis precisava ouvir. Nadou até a margem do rio, saiu da água e correu bosque adentro.

Sei bem sobre aquilo que dizem, de que “a curiosidade matou o gato”, mas eu não poderia deixar de ir atrás dele. Assim, vi quando o patinho começou a malhar, sem parar, fazendo flexões, levantando galhos de árvores e arremessando pedras.

— Vejamos se, depois dessa malhação, não serei bonito suficiente.

Depois de um tempo, ele voltou para o rio e ficou olhando seu reflexo na água: estava com as asas mais musculosas, com o bumbum mais empinado e com as patas mais grossas. Gostava de se olhar, ainda mais lindo, ainda mais forte. De repente, a água tremeu, e Adônis percebeu que Cyz se aproximava.

— Hum, vejam só! — ela disse. — Está com um visual mais atlético.

— Sim, sou o patinho mais bonito de todo o mundo. Pode acreditar! E agora, você aceita ser minha namorisne?

— Ainda não. Como é que poderemos nos beijar, se temos bicos tão diferentes? O seu é totalmente chato e parece até uma pá de pedreiro. Enquanto você não tiver o bico mais fino, não podemos ter nenhum compromisso.

Não adiantava fazer bico. A opinião de Cyz era incontestável. Olhando para a água, ele compartilhou o mesmo sentimento: o bico realmente enfeava sua face. Ele precisava encontrar um jeito de arrumar aquilo, nem que fosse com cirurgia pática.

Do nada, ele arregalou os olhos; isso era sinal de que havia tido uma ideia. Saiu correndo para dentro do bosque, e eu o segui, esgueirando-me entre as árvores. Ele pegou duas pedras e começou a lixar o bico.

— Quero só ver se, depois dessa afinação, ainda não serei bonito suficiente.

Lixou, lixou, lixou, até que o que era chato se tornou cilíndrico. Assim, voltou para o rio, encantou-se com o próprio reflexo e, depois, chamou Cyz.

— Cyz! Cyz! Veja... Estou forte e com o bico fino. Agora, sou ainda mais belo.

— Hum... Mas ainda falta algo em você. Seu pescoço é tão curtinho. Se você não tiver o pescoço mais longo, não conseguirá me alcançar para me olhar nos olhos.

Adônis via novamente sua imagem na água: já era um pato bonito, mas é claro que, se esticasse o pescoço, ficaria elegantíssimo.

Correndo, mais uma vez, Adônis escondeu-se dentro do tronco de uma árvore. Fui atrás e o vi empurrando a cabeça para um lado e para o outro, para frente e para trás. Forçava a musculatura do pescoço para que crescesse. Fez isso várias vezes, até que ficou parecido com uma girafa em miniatura.

Ele se aproximou da beira do rio, inclinou-se e viu uma figura muito diferente da que ele era no início: o pato Adônis havia se transformado em um cisne perfeito, um lindíssimo cisne branco. Estava ansioso para se mostrar à Cyz.

— Cyz! Cyz! Cadê você?

Mas a jovem rosada havia desaparecido. Adônis entrou no rio e nadou por todos os cantos para encontrá-la. Tentei ajudar, pulando de arbusto em arbusto. De repente, foi possível enxergar a imagem dela, escondida entre as folhagens. Ao seu lado, no entanto, havia um lindo cisne azul-claro.

Coração de gato é menor do que coração de gente humana, mas se comove com a mesma facilidade. Quase chorei ao ver a tristeza nos olhinhos de um pato que, depois de tanto sofrimento, perdeu a amada para outro.

Sentado à beira do rio, Adônis mantinha o olhar baixo, ora admirando sua imagem refletida na água, ora tentando enxergar o horizonte, onde se formava uma violenta cachoeira. Saí da zona de conforto, cheguei perto dele e resolvi conversar.

— O amor não tem espécie, não é mesmo?

— O quê? Quem é você? Vai me devorar?

— Calma, meu amigo. Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

Adônis ainda estava assustado, pois não entendia o que eu queria com ele. Mesmo assim, tentei animá-lo.

— Você é o pato mais bonito que já conheci. E tem esse topete incrível! Agora, então, está tão belo quanto um cisne branco.

O patinho franziu o cenho e levantou a vista. Os olhos arregalaram outra vez: teve uma nova ideia.

— É este o problema: eu sou branco!

— Como é?

— A Cyz só se interessou por aquele outro cisne, porque ele é azul-claro, uma cor tão rara quanto a dela. É isso! Preciso tingir minhas penas. Quero ficar da cor do ouro e, aí sim, conquistarei seu coracisne.

Adônis parecia disposto a fazer o que estivesse ao seu alcance para ter o amor correspondido. Saltando como um pato mal-acostumado com as mudanças físicas, colheu algumas flores. Em seguida, retirou o néctar de cada uma delas e espremeu tudo em seu corpo. O líquido amarelo trataria de deixá-lo totalmente dourado.

Logo veio o resultado: Adônis, além de ser tão belo quanto um cisne, estava tão dourado quanto uma pepita reluzente. Não havia como disputar com tamanha beleza.

No entanto, um zum-zum-zum foi ficando cada vez mais alto. Meu instinto de gato soube que coisa boa não podia ser. Quando Adônis se virou, um enxame de abelhas vinha em sua direção.

— Por favor, não me ferroem — ele dizia. — Não fiz nada para vocês.

— Desculpe, mas precisamos colher o néctar para fazer o mel, e você usou o de todas as flores. Agora, precisamos pegá-lo de você, ainda que seja dolorido.

Mesmo tomando cuidado, as abelhas acabavam ferroando Adônis. Ele ia ficando mais vermelho e inchado a cada picada. Em desespero, ele correu até o rio e pulou. As abelhas, que são como gatos e odeiam água, foram embora.

Ao sair, o estado de Adônis era lamentável: as ferroadas o deixaram deformado, e a tintura, mesmo sendo natural, fez com que a maioria das penas caísse. O topete era a única coisa que continuava intacta no patinho.

Nesse momento, um grupo de patinhas passou, e uma delas comentou:

— Gente, veja! É o Adônis. Dá para reconhecer pelo topete.

— Imagine, amiga! Onde já se viu comparar o Adônis com essa criatura horrível? E vamos embora, porque essa feiura faz meus olhos arderem.

Desiludido, Adônis sentou-se na beira do rio, apreciando sua imagem: os músculos o deixavam parecido com um ogro; o bico fino o fazia parecer um acidentado; o pescoço longo era desengonçado e molenga; e a falta de penas mostrava que ele havia se transformado em um monstro.

Cyz e o cisne azul-claro passaram por ele, indiferentes, com suas asas entrelaçadas. Achei melhor não me aproximar. Adônis derramou uma lágrima, e o reflexo estremeceu. Do fundo do rio, uma voz falou:

— Por que um patinho tão lindo como você está tristonho assim?

— Lindo, eu? Sou uma aberração da natureza!

— Imagine. Você é igualzinho a mim. Venha, seja meu par.

Talvez as águas estivessem certas; afinal, elas eram a melhor companhia. Adônis entrou no rio e seguiu na direção da correnteza, até desaparecer completamente no horizonte.

sábado, 14 de julho de 2012

Sinestesia, oximoro e anadiplose


1º lugar no concurso de crônicas da AMLAC – Vinhedo/SP


Meu mal de nascença é a preferência por coisas incomuns; sempre fui o patinho feio que rodeia o lago dos cisnes. Nas aulas de educação física, todos brigavam pela bola de futsal, mas eu só queria saber do tabuleiro de ludo. Nos fins de semana, todos idolatravam o sol, mas eu adorava os sábados e domingos chuvosos. Nas baladas, todos carregavam o frasco de vodca, mas eu só segurava o copo com suco de abacaxi.

Na faculdade, não foi diferente. Cada um tinha sua própria paixão por uma das áreas do curso de Letras: uns eram rígidos na gramática; alguns, meticulosos na linguística; outros, fantasiosos na literatura. A amplitude da Língua Portuguesa, no entanto, me permitiu ser diferente (de novo) e escolher me especializar em outro campo: o da estilística. A maioria dos meus colegas nem sabia o que era isso.

— Estatística?

— Não. Estilística!

— Ah, aquilo de fazer vestido de noiva.

Quando eu tentava, humildemente, explicar que se tratava de estudar o estilo da palavra, a decepção era notável:

— Tanta coisa para fazer, e você fica dizendo se a palavra é feia ou bonita?!

De nada adiantavam meus solilóquios sobre funções, vícios e figuras de linguagem. Era inútil mostrar que há nome para quando se mescla sentidos, ou se fala de modo contraditório, ou se repete a última coisa que foi dita; sinestesia continuava sendo aquilo que o médico aplica para o paciente relaxar, oximoro permanecia uma marca de alvejante e anadiplose ainda era nome de uma tribo indígena do sul do Mato Grosso.

Os dias iam passando, e as pessoas insistiam em ignorar a pobre estilística, mas eu me viciava cada vez mais. Passei a fazer análise do discurso em simples conversas. Meu namoro terminou por culpa disso.

— Eu te amo do tamanho do mundo.

— Hipérbole!

— O que foi, gatinho?

— Metáfora!

— Dá pra parar de gritar alto?

— Pleonasmo!

— Faça isso mais uma vez e estes dedinhos vão balançar num ritmo de despedida.

— Eu... Eu...

— ?

— Eufemismo.

Solteiro, sentia-me socialmente sofrível e só conseguia pensar na aliteração que isso provocava. Foi nessa ocasião que alguns amigos me levaram para o bar da universidade e, por acaso, foi anunciado que já estava decidida a sede para a Copa do Mundo de 2014. O balconista exaltou:

— A Copa do Mundo está vindo para o Brasil!

Cheguei a emitir uma onomatopeia — boom! — quando ouvi essa maravilha de personificação. Já havia analisado personificações de todos os tipos: animais, objetos, roupas, astros, datas e até sentimentos. Mas uma prosopopeia de evento internacional era novidade para mim. Pude imaginar aquela festa toda, com estádio e gente e barulho e bandeiras e polissíndeto, dando corridinhas até chegar ao Brasil.

— Querem outra novidade? Acabaram de confirmar que as Olímpiadas também virão para a Cidade Maravilhosa!

Nem dei tanta importância para a perífrase relacionada ao Rio de Janeiro; a personificação, do mesmo tipo da anterior, estava presente novamente. E, enquanto eu pensava a respeito disso, tudo começava a se modificar: novos estádios, novos hotéis, reformas nas cidades, reforma nos próprios brasileiros.

Ocorria uma espécie de metonímia da vida real, a transformação do quase nada para o tudo, uma sinédoque do todo pela parte: o Brasil se modificava. Aí alguém comentou da tradicionalidade, se as cidades não perderiam seu valor histórico e cultural com tantas mudanças.

A pergunta não era dirigida exatamente a mim, mas confesso que só consegui, mais uma vez, pensar na estilística. Assim, responderia: a conotação não destrói o sentido denotativo; apenas o embeleza. Mas não consegui. Analisei meu pensamento, a metáfora que foi utilizada para construir outra metáfora.

— Metalinguagem! — berrei.

sábado, 7 de julho de 2012

Primorados



Cheguei à casa de Caroline pedindo vitamina de morango, mas a polpa havia acabado. Pensei em pedir um beijo para que o batom se encarregasse de transmitir o sabor da fruta, mas me contive. Calei o coração, respirei fundo e me contentei em sentir seu perfume com aroma de frutas vermelhas.

Vermelhas como as notas que nunca tirei. Sempre tive a sorte de me sair bem em praticamente tudo o que me proponho a fazer: estudo, trabalho, artes. Dizem que sou uma pessoa felizarda — mas isso porque ninguém coloca o amor nessa avaliação. Aos 18, já me considero marcado pelas frustrações amorosas.

Posso não demonstrar, mas é certo que prefiro a tragédia. Inexplicavelmente, me sinto bem em falar sobre os foras, as torcidas de nariz e as diversas viradas de rosto que já levei. É como se, falando, a realidade se transformasse em ficção e ficção doesse menos.

Supondo que as garotas possam ser classificadas como frutas, minha primeira paixão foi um açaí. Ela estudava em outra escola, região distante. Conhecia-a pessoalmente, mas achava que com o Orkut eu chegaria até ela mais rapidamente. O resultado foi que, enquanto eu upava meus arquivos em conexão discada, um garoto off-line a tomou com guaraná antes de mim. Daqui surgiu um conto.

A paixão seguinte foi uma laranja, a fresquinha que era consumida por todos os meninos da escola. Talvez a desejasse somente por ser menino e ser da escola. Mesmo assim, deixei meu romantismo meloso lutar contra a luxúria cítrica dela e me declarei por SMS. Ela se tornou lima, mas foi pela doçura que sentiu por uma ligação que chegou antes do meu torpedo. Daqui surgiu outro conto.

Decepcionado sentimentalmente, misturei ambas as frutas e fiz um energético que me deu forças para escrever um romance juvenil de amor não-correspondido. As cento de vinte páginas foram lidas e despertaram a identificação de diversos outros cujas frutas não lhes cresciam no pomar.

Até esse ponto, acreditava que, mesmo dramática, minha vida amorosa era original. Quando percebi que nem nisso conseguia evitar o clichê, o assumi de vez e tratei de me apaixonar pela minha melhor amiga.
Ela era uma banana, estava sempre presente. Sabia que me amava e todo mundo confirmava isso. Por isso a surpresa foi grande quando lhe compus uma música e parei de ouvir sua voz. Minha melodia se perdeu em desarmonia quando ela me fez cair em sua casca e entrou em período antitropical, como se não existisse mais para mim.

Nisso virei a página e conheci uma ameixa que me levava a sério, tão a sério que impedia minha aproximação para que não me machucasse com o caroço. A banana resolveu reaparecer e desenvolver a péssima mania de fazer simpatias desejando minha morte. Fiquei tão preocupado com isso que não me atentei quando a ameixa já estava servindo de enfeite para outro manjar.

Estava cansado de ser vítima das garotas e resolvi desabafar com um amigo, o qual era o único que parecia ser capaz de me entender. Era como uma baunilha, especiaria inconfundível. Os blá-blá-blás dele me fizeram esquecer o mundo feminino e passaram a dar um sabor diferente à minha vida.

A afinidade era tanta que quando comentei foi sem muito nervosismo e o choque que ele levou não foi forte, pois também curtia uma salada de vegetais. Pensei que, já que não havia dado certo com as frutas, daria com as plantas — ou melhor, com a única planta pela que aconteceu de eu me apaixonar. Mas ele não me permitiu tocar em seu pólen.

Com o tempo, vi a baunilha se transformando em um sorvete de creme e, mesmo sendo chupado por vários, esse loiro gelado não deixava que eu tirasse nem uma casquinha.

Então fiz meu relatório: se não dava certo nem com meninas nem com meninos, nem com frutas nem com plantas, o problema estava em mim. Concluí que a melhor maneira de não dificultar as coisas era abrir mão delas.

Mas, aparentemente, as dificuldades me perseguiam. Pouco tempo depois, tentei, mas não pude ignorar o amor que passei a sentir por Caroline, que não conheci pela internet nem tinha namorado, mas cujos pais eu chamava de tios.

Já fomos confundidos como um casal diversas vezes. Dizemos, portanto, ser primorados. Os beijos estão descartados, bem como as carícias íntimas, mas ambos nos relacionamos muito amigavelmente. Eu me sinto muito bem ao lado de Caroline e — posso estar enganado — noto reciprocidade.

O namoro entre primos, no entanto, por mais que tenha se tornado comum, ainda choca toda a família. Como tudo o que é chocante me causa dores estomacais, evito a gastrite nervosa deixando que o relacionamento amoroso aconteça somente na imaginação.

Queria lhe provar o morango do batom. Queria lhe aspirar o morango da fragrância a todo  instante. Queria ser o elefante audacioso que pinta as unhas de vermelho para entrar escondido no campo de morangos. Mas prefiro evitar transtornos criando ilusões antes de dormir.

“No Natal, a pedirei como presente.” E, para ajudar, ela me tirara no amigo-secreto.

“No Réveillon, a cumprimentarei nos lábios.” A meia-noite realmente trouxe a vontade, mas não a coragem necessária.

“Um dia a levarei no cinema e...” Os pensamentos terminam sempre da mesma forma, mas continuam apenas pensamentos. Sonhar é mais garantido do que agir.

Tenho certeza de que um dia contarei e tenho certeza de que nunca contarei. Devido ao paradoxo de certezas, prefiro estabelecer como certo o fato de que sempre seremos primos e de que, com abraços fraternais, poderei apreciar seu cheiro e a cor da sua boca. Poderei viver rondando o campo de morangos para sempre.