sábado, 29 de setembro de 2012

adeus, caipirinha!




f
a
r
t
j           m         e          d          c
á          e          i           o          ê

sábado, 22 de setembro de 2012

Vida de Pedra



Desde que me conheço como pedra, percebo que não exerço bem essa função. Evito ao máximo atrapalhar, incomodar ou dificultar as coisas. As pessoas é que se atrapalham, se incomodam, dificultam tudo comigo.

Minha primeira experiência marcante foi quando eu ainda morava em uma caverna. Ali também vivia um homem barbudo, já de meia idade. Ele havia conquistado sua primeira amada, com a qual provavelmente se casaria e procriaria. Estava tão feliz que fez uma pintura rupestre sobre a família que sonhava em ter. Fui usada para registrar uma das maiores alegrias da vida de um homem.

Mais tarde, um grupo de trogloditas começou a me quebrar até me deixarem com um tamanho fácil para carregar. Do lado de fora, vendo pela primeira vez a luz do sol, senti lapidarem de um lado e de outro. De repente, me jogaram ladeira abaixo e rolei como se rola uma boa roda. Estive presente na maior invenção da época.

Depois de terem me utilizado por bastante tempo, não aguentei tanto impacto e me parti ao meio, o que me fez ficar isolada e sem utilidade naquele momento. Porém, com a chegada do período glacial, servi de abrigo para diversos insetos da era do gelo.

Séculos depois, tive as partes separadas. A distância entre mim e eu mesma foi um sofrimento necessário. Um lado foi trabalhado e utilizado como banco para a plateia do teatro grego se sentar; o outro participou da formação de um lindo palácio. Infelizmente, este foi explodido e o meu pedaço se desmanchou no ar.

Eu, o lado sobrevivente, continuei sendo útil por gerações. Participei inclusive da escravatura, aprisionando escravos. Confesso que não me orgulho desse meu feito.

Muitos anos depois, olharam para mim e enxergaram arte. Levaram-me para que eu fosse esculpida. Poliram daqui; poliram de lá. Ao terminarem, descobri que a arte vista em mim era a poesia. Protagonizaria diversos poemas a respeito da morte.

Meu destino foi virar lápide — pela minha eternidade de pedra, uma eternidade que pode ter um fim inesperado.

Durante o dia, as pessoas choram sobre mim. Após o pôr do sol, eu é que entro em prantos sem entender por que eu, que sempre fui a favor da felicidade, me tornei responsável por tanta tristeza. Certamente, não tenho um coração que condiz com a minha imagem.

sábado, 15 de setembro de 2012

Garota Terremoto



Um sonho que eu tinha na minha pré-adolescência pós-moderna era conhecer a Europa. Meu paladar até sentia os sabores do chocolate suíço, do salsichão alemão e da pizza italiana, só de imaginá-los. Depois que fui crescendo, as suíças, as alemãs e as italianas é que deram um novo gosto à minha juventude. Mas, vendo o tanto de desastres que acontecem do lado de lá do Atlântico, entrei numa desilusão barroca.

Para não descartar totalmente a Europa e passar a vê-la apenas como ponto alto das tragédias, decidi amenizar tudo com literatura. Dentre todos os acidentes europeus, os meus preferidos são os de trem. Acredito ter uma paixão secreta por descarrilamentos. Os atentados no metrô de Moscou e de Madri são exemplos que serviram de base para textos que encarrilaram no gosto dos leitores.

Mas há uma coisa, em Lisboa, que sempre me intrigou mais do que os meios de transporte: os fenômenos da natureza. Não me refiro aos portugueses, trovejados em avalanches de piadas tempestuosas; e sim às catástrofes naturais, em especial o terremoto de 1755. Faz quase trezentos anos desde essa desgraça, mas os abalos sísmicos continuam em alta por lá.

Com a facilidade da internet em aproximar pessoas distantes e criar intimidades com estranhos, conheci uma garota lisboeta — para mim, garota; para ela, rapariga. Ambos dividíamos o mesmo amor pelas Letras e esse foi o elo da nossa amizade virtual. Ela, então, se apresentou como a miúda benjamim de um gajo porreiro, e eu também era o filho caçula de um cara simpático. Foi mais uma coisa em comum.

Antes mesmo de transformá-la decididamente em algo real, precisei consolá-la: foi quando José Saramago morreu. Sua terra estava em tremor, num terramoto, como ela dizia, e precisou se apoiar em mim para não cair. Acabamos por confiar um no outro. Em menos de trinta tuitagens, já estávamos trocando senhas pelo privativo. A partir de então, ela tinha acesso a todas as minhas contas de sites de relacionamento.

O envolvimento era quente até que um novo terremoto começou. Eu era a favor do retorno do trema, e ela era contra a queda dos c e p impronunciáveis. Eu queria a volta dos acentos nas paroxítonas terminadas em ditongo, e ela continuava abolindo o circunflexo. Eu insistia no você, ela batia o pé no tu. Dentre tantas coisas em comum entre mim e ela, havia uma diferença que não nos deixava ser um casal feliz: a língua.

Após muitas discussões lexicográficas, decidimos bloquear um ao outro; era isso ou se comunicar em inglês. Por fim, me lembrei de que precisava trocar a senha das minhas redes sociais, mas já era tarde. Ela já havia excluído fotos, insultado amigos, adicionado spams, feito um terramoto no meu perfil. Ah, aquela rapariga!

sábado, 8 de setembro de 2012

Se Fernando Pessoa rima com Lisboa...



Por que é que João Paulo Hergesel não rima com Alumínio? A resposta pode variar entre estas duas: (a) porque eu não sou um escritor de verdade; (b) porque nasci no lugar errado.

Vangloriando-me um pouco e tomando como certa a segunda alternativa, fiquei me perguntando o que seria melhor: naturalizar-me em uma cidade que rime com meu nome (como Ilhéus, Morro do Chapéu, Montevidéu) ou mudar meu sobrenome para algo que rime com Alumínio (como Plínio, Abissínio, Patrocínio). No pior das hipóteses, Alumínio é que poderia mudar de nome, para Porta do Céu, por exemplo.

Então, um dos meus neurônios, raciocinando, quis resolver esse impasse, alegando que, embora eu more em Alumínio desde bebê, minha terra natal é Sorocaba. Essa solução, na verdade, não ajudou em muita coisa, pois Sorocaba tampouco rima com João Paulo Hergesel. Talvez eu devesse inventar um pseudônimo para começar a assinar meus trabalhos: Bicho-da-Goiaba! É a minha cara e rima com Sorocaba.

Mas a ideia do pseudônimo ainda não havia me deixado satisfeito; não estava feliz em ser um inseto poético. Tentei rimar meus nomes do meio, Lopes e Meira, mas não tive bom resultado. Foi quando passei a imaginar que a primeira alternativa é que pudesse estar correta. Mesmo participando de diversos concursos literários, publicando livro, escrevendo para jornais e blogs, estudando Letras e marcando presença em tudo quando é evento ligado à literatura, talvez eu não tenha nascido para a escrita.

Algumas doses dessa cruel e suposta realidade me fizeram viver uma frustração artística por um tempo. Mas logo dei a volta por cima e preferi pensar que, com Fernando Pessoa, tudo não passou de uma coincidência. Não é a rima do nome com a cidade natal que define o escritor. Exemplos disso são que Clarice Lispector não rima com Tchetchelnik, Vinicius de Moraes não rima com Rio de Janeiro e Monteiro Lobato não rima com Taubaté.

Já havia até me conformado, mas ainda não estava totalmente feliz: se Fernando Pessoa pode, por que eu não posso? Enquanto perdia tempo matutando sobre isso, uma amiga da faculdade, vendo meu desespero, resolveu logo o problema: o escritor João Paulo Hergesel só pode ter vindo do Beleléu! É um lugar misterioso, indeterminado, que não aparece em nenhum mapa, mas que certamente está repleto de imaginação e criatividade.

Desde então, me senti mais poeta.

sábado, 1 de setembro de 2012

Se a ilhota é minha, chamo de ilhinha!



A ilha de Onira é a menor do mundo, com somente um palmo de extensão. Mas a ilha de Onira é também a maior do mundo, pois abriga bilhões de habitantes e se limita com milhares de universos. É um lugar tão perto que pode levar para tão longe. Não tem mapa físico nem político; aparece apenas no mapa anatômico. É uma ilha particular, em que só entram aqueles que forem autorizados. Como sou canhoto, ela fica do meu lado esquerdo.

Essa ilha é uma porção de aveia rodeada por suco de jabuticaba com ameixa. Nela, como em toda ilha, tem coqueiros, pedras e areia. Mas os coqueiros dão palmito, as pedras flutuam e a areia tem gosto de groselha. Também tem nuvens no céu azul, mas, dessas, eu não sei o sabor nem o número da certidão de nascimento, pois, sempre que estou lá, ando por cima delas e sinto cócegas.

Na primeira vez que me lembro de ter ido para Onira, conheci uma barata roxa que era dona de um controle remoto. Ela tomava Coca-Cola, falava inglês e morava no norte, mas, como estava de férias, queria visitar o sul. Para isso, ela apertou um botão vermelho de seu controle e o planeta se inverteu. Segui o exemplo e passei a contrariar tudo o que um dia alegaram que era inalterável.

Depois que criei gosto pelo lugar, fiz amizade com portas, tubarões e edredons que pulavam amarelinha. Acredito que eu tenha ficado íntimo deles, pois, numa das vezes, uma vaca veio me contar que o delegado havia prendido a respiração, mas ela deu um jeito de fugir com ajuda de um sol que se chamava Iolanda.

Passei muito tempo lá até descobrir que, assim como todo território, essa ilha também tinha hino, bandeira e brasão: o hino era feito em mímica, a bandeira era dois e o brasão ficava na churrasqueira presidencial.

Certa vez, quando eu já estava me tornando adolescente, escutei um helicóptero falando para uma pétala de cravo que, em algum lugar daquela areia de groselha, havia um tesouro enterrado. Não tive dúvidas e comecei a cavoucar, com canudinho de milk-shake, até que atingi algo barulhento e curioso.

De repente, do buraco que havia se formado no chão, começaram a vazar palavras. Saíam como petróleo, porém com tamanhos, cores e formatos diferentes. Tinha palavra curta — pé — e tinha palavra longa — hipopotomonstrosesquipedaliofobia — e tinha palavra bonita — veludo — e tinha palavra assustadora — trovejante — e tinha palavra que nem era palavra — gunkh. Peguei um balde de almaço e comecei a juntar todas elas. Desde então, tenho feito meus relatos de todas viagens que faço por lá.

Hoje, passo mais tempo na ilha de Onira do que em qualquer outro lugar. Algumas pessoas se incomodam com isso, pois, sempre que precisam da minha atenção, estou ocupado demais cantando no karaokê com algum porco suíço. Vivem me dizendo que devo me esquecer de lá, não me apegar a essa loucura. Já cheguei a considerar a hipótese, mas não encontrei maneira de cumpri-la: lá, e apenas lá, posso me ousar e escrever crônicas sem um pingo de juízo.