sábado, 22 de dezembro de 2012

Quando a casa não tem chaminé, Papai Noel entra por onde?



— Fran, quando a casa não tem chaminé, tipo essa da vovó, o Papai Noel entra por onde?

— Eu não sei, Fabinho... Coca ou Fanta Uva?

— Fanta Uva!

Os primos conversavam, enquanto procuravam alguma guloseima na geladeira. Era véspera de Natal; devia ter chocotone em algum canto dali.

— Fran, veja como a lâmpada da geladeira está piscando: acende, apaga, acende, apaga...

— É, ela anda meio vaga-lume! Mas não é de se surpreender, já que a coitada é presente de casamento da vovó.

— Aquilo é um panetone?

O embrulho estava escondido atrás do pacote de vagens, que já permanecia ali há algum tempo, porque ninguém queria comê-las.

— É de frutas cristalizadas. Eca!

— Então, vamos ficar só com a Fanta Uva.

Enquanto bebiam, houve um minuto de silêncio; mas foi só silêncio externo, porque, no pensamento, Fabinho armava uma proposta:

— Fran, e se esta noite a gente ficar acordado para ver por onde é que o Papai Noel vem?

— E quem disse que é verdade que ele vem?

— Vem, sim! Eu vi a vovó tirando xérox da conta de telefone ontem. Tenho certeza de que foi para atualizar o endereço na lista de visitas dele.

A menina topou com um “tanto faz”, dando de ombros. A manhã foi entardecendo até anoitecer. A família se reuniu na sala de jantar, onde havia uma mesa larga e cheia de comida que a gente só vê em fim de ano.

— Fran, será que esse peru veio do Peru?

— Eu acho que era uma perua e que veio de Nova Iorque.

— Para mim, ele era um gavião disfarçado de peru. Trabalhava como detetive, gostava de funk e torcia pelo Corinthians.

A família comia tudo que estava por ali, menos as uvas-passas, que a vovó experimentou com uma lambidela e disse que havia passado do ponto.

Após a ceia, os adultos decidiram descer à praia, para esperar a meia-noite junto ao mar. A avó decidiu ficar em casa, pois estava cansada. Os primos disseram que fariam companhia à avó — mas, na verdade, só queriam esperar até a hora em que o Papai Noel chegasse.

A avó foi para o quarto, enquanto Fabinho e Fran jogavam pif-paf sobre o tapete da sala. De repente, ouviram um barulho na cozinha. Foram correndo ver o que poderia ter acontecido e se depararam com presentes em cima da mesa e a porta da geladeira se fechando.

— Veja, Fran! Será que o Papai Noel entrou pela geladeira?

— Mas é claro! Como não pensamos nisso antes? O refrigerador é o melhor atalho do Polo Norte até a casa das pessoas.

— Isso quer dizer, então, que as vagens são, na verdade, ajudantes do Papai Noel disfarçados de legume?

A garota concordou. Abriu a porta da geladeira, para ver se ainda dava tempo de ver alguma coisa. Mas tudo estava normal, com exceção das vagens, que não estavam mais lá, e da lâmpada que continuava piscando.

— É, a geladeira continua meio vaga-lume.

— Vaga-lume, não, Fran! Ela está árvore de Natal.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Era uma vez


Selecionado no Prêmio SESC de Literatura "Rubem Braga" — 2012


Saber se realmente os opostos se atraem ou se tudo não passou de uma mera coincidência não é de minha alçada. Sei apenas que receberei duras críticas, críticas construtivas e destrutivas, por ter dado meu último adeus ao bem-dizer e deixado a desejar com a estilística desta crônica. Embora pareça um comportamento inenarrável, tentarei agradar gregos e troianos ao revelar em alto e bom som esse segredo guardado a sete chaves.

Parece que foi ontem que a conheci, na aula de Literatura Brasileira. Era uma menina veneno, com olhos de ressaca e que dispensava quaisquer apresentações. De cabelos sedosos e nariz arrebitado, era uma bonequinha de luxo, cheia de não-me-toques. Era complicada e perfeitinha, uma virgem dos lábios de mel, mas que tinha um defeito incorrigível: abusava dos lugares-comuns.

Eu fugia dos vícios de linguagem como o diabo foge da cruz, então, digerir as palavras dela era chumbo grosso; corroíam em meu peito. Ela iniciava qualquer papo furado dizendo cobras e lagartos, fazendo caras e bocas. Eu fazia boca-de-siri para evitar o toma lá dá cá e colocava um ponto final na conversa. Mesmo assim, ela roubou meu coração e me fez ter uma vaga ideia do que é se entregar a uma paixão avassaladora.

— Mergulhei nas páginas de um livro — ela contava — tão sem eira nem beira que fico com vontade de tecer comentários que caiam como uma bomba no autor. Mas tenho medo de chover no molhado. Será que não é melhor correr por fora e fugir da raia na hora da resenha em vez de botar pra quebrar?

— É — eu respondia, enquanto pensava na morte da bezerra.

Ela dizia que só abria a boca quando tinha certeza, mas a minha certeza era a de que ela só assassinava a gramática. No fundo, esse jeito de ser a transformava em uma lenda vida. Talvez o cérebro dela fosse um esgoto a céu aberto ou tivesse sofrido uma lavagem cerebral quando criança, pois estava literalmente tomada pelos erros crassos. Eu arrastava a asa para ela, mas, para não dar bandeira, logo batia em retirada e respirava aliviado.

Virar a página, no entanto, não adiantava. De um leque de opções, ela era a única que preenchia minha lacuna. Era uma faca de dois gumes: ou ela ou a língua portuguesa. Tinha medo de meter o pé pelas mãos, mas não tive escolha: conjuguei esforços e pus as cartas na mesa. Por ela, tomaria banho gelado no inverno e iria a pé do Oiapoque ao Chuí. Ela podia cantar vitória e sagrar-se campeã.

Já na reta final, encerro esta crônica com chave de ouro, afirmando que chegamos a um denominador comum. Eu me entreguei a ela de mãos beijadas, dando um tiro de misericórdia no conhecimento linguístico que ainda tinha. Num futuro próximo, ela seria uma esposa dedicada que me daria um filho exemplar. Eu seria seu eterno apaixonado até que ela se tornasse uma viúva inconsolável.

Dei a cartada decisiva: desfiz o laço indissolúvel que tinha com o bom português e me aliei ao inimigo, afinal, quem vê cara não vê coração. E quem vê coração não dá muita importância ao lugar-comum, pois não há maior clichê do que morrer de amores.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Toques de Leve



Entrou na loja, o olhar indecifrável. O tronco comprido estava coberto por uma manga longa de malha que destacava a magreza e combinava com o sobretudo. Sua preferência por cores escuras era notável pelo preto que descia da cartola e ia até os sapatos. Apoiou-se na bengala e caminhou mancamente até o balcão. Os dedos finos tocaram lentamente a madeira envernizada e a voz rouca pediu:

— Um frasco de arsênico.

Aterrissou a carteira perto do caixa e pegou calmamente o saquinho de papel que continha a cura para sua doença terminal. Foi para casa, colocou o vinil dos Beatles na vitrola e se sentou. Ao som de Paul e Lennon, deu três goles tranquilamente e repousou as pálpebras cansadas. Em poucos minutos, o espírito imergiu as profundezas do céu e foi tocado suavemente pelas estrelas.