sábado, 17 de julho de 2010

Europa Descarrilada

Com base na notícia:
"Atentados no metrô de Moscou matam ao menos 38" (Revista Veja, 29/03/2010)

Os britânicos tomavam seu pontual e tradicionalíssimo chá matinal; os portugueses assistiam ao programa de culinária exibido na televisão; os taiwaneses comemoravam o dia da juventude; os brasileiros festejavam o aniversário de duas metrópoles, Curitiba e Salvador; os sumérios homenageavam à Ishtar, deusa mitológica. Era 29 de março e os russos andavam de trem.

Um vagão superlotado, gente de Moscou, cada qual com seu objetivo trilhado. Uma mulher grávida com consulta marcada no obstetra; um estudante adolescente rumo à aula de ciências que lhe aguardava; um poeta amador que só queria divulgar seus versos metrificados e fazer uma autopromoção; uma senhora de cabelos grisalhos que falava sozinha, em busca de alguém que ouvisse suas loucuras. Algumas vidas entre muitas outras.

O rapaz de quinze anos estava cansado de sua vida. Sabia que os dias seguintes seriam iguais aos dias passados. Sentia-se entediado de uma semana que apenas começava. Para se distrair da rotina, fazia algo também rotineiro: escutava música moderna em seu celular moderno. O alto-falante ligado, o suposto desejo de compartilhar o lixo musical americano com os demais passageiros.

O ritmo acelerado de uma canção para corações acelerados — All the single ladies, now put your hands up — se misturava com as palavras proclamadas pelo frustrado escritor de meia idade.

O tido poeta estava cansado de sua vida. Todos os dias, pegava sempre o mesmo metrô, recitando sempre os mesmos versos, sempre para as mesmas pessoas. A mesmice era porque considerava aquela tentativa de trova a mais bem feita por ele.

A rima rara de um poema hendecassílabo — Não preciso de um caldeirão de água quente / Basta-me uma panelinha de água morna / Não quero cozer um ovo de avestruz / Só cozinharei um ovo de codorna —, acompanhada pela trilha sonora da Beyoncé, atrapalhava a história contada pela pobre anciã.

A idosa vista como louca estava cansada de sua vida. Haviam morrido os pais, os irmãos, o marido, o filho. Não tinha mais família, não tinha amigos e, assim, acabava não tendo nem a si mesma. Queria desabafar os tropeços que levara, mas tropeçava nas próprias palavras e não era entendida por ninguém.

O relato sem sentido — Eu tinha um gato que não era meu e tinha um peixe que o gato comeu — juntamente da poesia contemporânea e da balada (badalada?), irritava a grávida que só queria um minuto de sossego antes de ter que se despir e se submeter a um ultrassom transvaginal.

A futura mamãe estava cansada de sua vida. Já era crescida, a idade na casa dos trinta, mas não conseguia assumir o fardo de mãe solteira. A hipótese de um aborto já lhe perturbava muito a mente. Em meio a uma confissão nonsense, a um exemplo de literatura marginal e a uma melodia de black music, não aguentou o estresse sonoro e desembestou a gritar.

O grito foi um pedido de silêncio bem aceito: o metrô parou, as pessoas também. No entanto, não demorou a que uma nova perturbação ocorresse. A garota loura sentada no fundo ficou em pé e revelou o mecanismo que escondia sob o casaco. Assim que a bomba fosse acionada, todos estariam em uma roleta russa, sem saber quais sobreviveriam e quais dariam adeus à vida da que estavam cansados.

Um chá amargo difícil de ser ingerido, um erro de gravação que não pôde ser evitado, juventudes corrompidas, aniversários interrompidos. Uma situação que nem deuses foram capazes de impedir.

Da explosão, saíram os corpos. O garoto, com as mãos mutiladas, não agradeceu por poder faltar às aulas daquela quinzena. O poeta, sem a pele do abdome, não ficou feliz por viver uma grande emoção que pudesse ser transcrita para o papel. A velha, cuja perna direita estava ensanguentada, não estava satisfeita por ter uma nova história para contar com detalhes.

Sem mais aborrecimentos, dúvidas ou queixas, a moça grávida, cruelmente decepada, representava, no chão do metrô, duas vidas extintas, duas frases que receberam o impiedoso ponto final — sendo que uma ainda nem havia aberto as aspas.

Um comentário: