sábado, 14 de maio de 2011

A vingança do creme de leite


Bananas em rodelas, maçãs em cubinhos e mamões em pedaços, tudo misturado numa única tigela. Então, o creme de leite é colocado e surge uma suculenta salada de frutas, um hidratante tropical para a língua e para o resto do corpo.

O creme de leite sempre teve sua merecida importância não só na salada de frutas, mas também em outras sobremesas light: creme de pêssego, pavê de abacaxi, sorvete de baunilha. Em alguns casos, quando a qualidade de light não era totalmente necessária, trabalhava em parceria com o açúcar.

Certa vez, a cozinheira decidiu inovar e optou por preparar uma mousse de maracujá. Como já era de costume, o creme de leite se fez útil, sendo levado ao fogo para cozinhar junto da fruta. O azedo do maracujá, no entanto, precisava ser combatido com forças maiores, e aí veio o leite condensado.

Era um alimento mais espesso que o creme de leite e mais amarelado, embora com nome parecido. “Na certa, sua única utilidade é tirar o azedo”, pensava o creme de leite enquanto dividia com o novato o espaço da panela. Quando a mousse ficou pronta, as papilas gustativas festejaram.

No dia seguinte, a cozinheira decidiu preparar o pavê de abacaxi. O creme de leite ficou todo satisfeito mais uma vez, mas não entendeu o motivo da cozinheira ter pegado a lata de leite condensado também. "Ora, sempre fiz um bom pavê sozinho", resmungava.

Aos poucos, o creme de leite foi percebendo que tirar o azedo não era a única função do leite condensado. Ele adoçava, suavizava e tornava o alimento mais saboroso ao paladar. E mais: quando era levado ao fogo, tinha a capacidade de virar doce de leite — diferente do creme de leite, que apenas derretia e virava um líquido mais aguado e sem graça que o leite de coco.

A preocupação do creme de leite tendia a ficar maior. Principalmente quando a cozinheira decidiu preparar a tão famosa salada de frutas. Ele já estava preparado para entrar em ação quando ela decidiu substituí-lo pelo leite condensado.

"Ele não é light, não é saudável... Por que ele, e não eu?", lamentava o creme de leite cujo pranto fez deslizar em sua embalagem uma salgada gota de soro. A tristeza aumentou quando os comedores de sobremesa aprovaram a troca de ingredientes por ter ficado mais docinho.

Esquecido na despensa, o creme de leite pensava na injustiça que lhe havia sido feita. “Vingar-se ou não se vingar? Eis a questão!” Nunca foi vingativo, mas era impossível manter seu lado humanitário, de quem sempre colaborou com a alimentação, pois a traição havia sido muito grave.

O objetivo do creme de leite, porém, não era atacar seus consumidores, e sim seu rival. Levou algumas horas, mas tramou todo o esquema. A vingança seria doce como o infeliz.

Percebeu que toda vez que a cozinheira precisava abrir uma lata, ela a apoiava no batente da janela, um lugar fácil para cair quinze andares abaixo. Então, tudo o que o precisava ser feito era deixar o abridor de latas liso para que ele escapasse das mãos da senhora e esta, acidentalmente, empurrasse a lata para fora.

Para que isso acontecesse, contou com a ajuda de alguns amigos. A ideia era ele rolar para o lado e bater na embalagem de macarrão; esta perderia o equilíbrio e cairia sobre o pacote de café; este estufaria do lado contrário e arremessaria a barra de chocolate; esta cairia sobre o frasco de molho de pimenta, que perderia sua tampa e vazaria bem em cima da gaveta de talheres, em especial do abridor de latas. O óleo da pimenta deixaria tudo mais escorregadio.

O creme de leite colocou o plano em ação. Quando a cozinheira chegou e viu a bagunça, arrumou tudo urgentemente. Mas a armação não poderia mais ser desfeita: o abridor de latas já estava oleoso.

Quando todas as coisas já estavam no lugar, a cozinheira ficou a postos para preparar a sobremesa. O creme de leite sabia que aquela seria a hora que sua vingança se concretizaria.

A cozinheira colocou o avental; o creme de leite se remexeu dentro da lata. A cozinheira se aproximou da despensa; o creme de leite borbulhou, segurando o riso.

A mão da cozinheira seguiu em direção à lata de leite condensado e o creme de leite, ao lado, comemorava consigo mesmo. Entretanto, por causa do regime que havia começado naquela manhã, desviou o braço e, tragicamente, pegou a lata de creme de leite.

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