sábado, 23 de outubro de 2010

Descendo...


Entrei no elevador e o casal estava lá, um de cara virada com o outro, como se tivessem acabado de brigar raivosamente. Fui para a parede do fundo, não cumprimentei ninguém, contribuindo para manter o silêncio daquele recinto.

O elevador descia e os rostos franzidos não se moviam. Sabia que eles não viam a hora de sair daquele elevador para não terem mais que ficar próximos. A vontade deles, no entanto, foi interrompida — porque a energia foi interrompida.

Presos entre o primeiro andar e o térreo, a luz de emergência se acendeu, servindo de abertura para uma estranha discussão entre o casal.

— Você sabe que eu jamais o perdoarei pelo que fez, não é, Nei?

— Até agora não entendi por que é que você se magoou tanto, Cida.

— Você matou a Madama Guadalupe! Ela era minha personagem preferida. Você não tinha esse direito.

O autor decide tirar a vida de uma personagem e um casamento fica abalado por isso. Isso sim parece uma história de ficção.

— Nei — disse, apontando o dedo indicador para o nariz do marido. — Nei, você ainda vai se arrepender por esse assassinato.

— E você, Cida, vai se arrepender se continuar apontando esse dedo para mim.

— Ah, é? O que você pode fazer contra meu dedo?

O homem não demorou a agir. Abriu a boca o máximo que conseguiu e a levou em direção ao dedo, abocanhando-o com força. A mulher berrou mais por ódio que por dor. Deu a réplica: abocanhou a mão inteira do companheiro.

O homem aumentou o tamanho da mordida e pegou até o pulso. Ela, em contrapartida, ia engolindo o braço dele sucessivamente.

Ele mastigava o cotovelo dela, enquanto ela já mordiscava a clavícula dele. Era impressionante assistir à cena de um casal se devorando, sem se importar com quem estivesse ao redor.

Num súbito, a luz de emergência também queimou, deixando-nos em um escuro total. Não era mais possível ver a refeição exótica do casal, mas dava para ouvir os horrendos barulhos de dente batendo em osso e sangue se misturando com saliva.

Quando a energia voltou, as portas logo se abriram. Incrédulo com o ocorrido, fui o primeiro a sair do elevador, fingindo que não havia visto nada de anormal. Ninguém saiu depois de mim; ninguém ficou lá dentro.

Um comentário:

  1. A história é muito boa! Parabéns! Um pequeno toque de humor negro, mas boa, muito boa.
    Me lembrou a peça de Ionesco, também sobre problemas de casais, "A Cantora Careca"... da qual também gosto muito.

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