sábado, 11 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Alguma coisa sobre pneu



É só você acreditar
Que uma nova estrela vai poder brilhar
ROUGE, Nunca deixe de sonhar.

Eu estava revirando uma lata de lixo, e apenas meu rabo estava para fora, quando ouvi um rosnado. Parei com uma espinha de peixe na boca para ouvir melhor. Os rosnados aumentaram e pareciam vir de três gargantas diferentes. Resolvi sair devagar da lixeira e dei de cara com três rottweilers prontos para atacar. Não tive tempo de pensar em nada; apenas ericei o pelo, dei um miado esganado e larguei na pole-position.

O pôr do sol me deu forças para incorporar um praticante de parkour, com saltos quase quilométricos — até que me encurralei em um beco. Arregacei as unhas para escalar a parede, tijolo por tijolo, e dei dois mortais para cair do outro lado do muro. Vi uma janela aberta e nem me perguntei de onde poderia ser: lancei meu corpo para dentro, de uma forma que causaria inveja até mesmo à Mulher Gato.

— Veja, tia-que-dá-remédio! É um miau.

Olhei para a menina, na cama, com um sorriso apagado no rostinho doente, e também para a mulher, toda de branco e com chapeuzinho de enfermeira. De tantas janelas para pular para dentro, tive a petulância de atravessar a de um quarto de hospital. A enfermeira ficou tão desesperada que apertava descontroladamente o botão para chamar ajuda, enquanto disparava:

— Meu Deus! De onde essa coisa veio, Glorinha? Tem que sair rápido, antes que faça algum mal a você.

— Mas, tia-que-dá-remédio, ele tá dodói também, no olhinho. Ele tem que ficar comigo.

A menina era bem menininha ainda, mas tossia tão forte que até pareciam os latidos dos rottweilers. A enfermeira falava mais alto que a tosse da menina e chamou tanto por socorro que, logo, chegou mais uma enfermeira, outra enfermeira, o segurança do hospital, o médico, a mãe da menina e um paciente que estava no quarto ao lado.

— Eu pego pela barriga!

— Eu seguro as patas, para ele não arranhar.

— Eu tapo o focinho, para ele não morder.

Todo mundo elaborava uma estratégia maluca para me tirar dali — mas bastava que pedissem, e eu sairia. Mesmo assim, esperei para ver o que fariam. Quando uma enfermeira veio de um lado e o segurança veio de outro, a menina berrou, entre as tossidas:

— Parem! Ele é bonzinho. Vejam como balança o rabão.

A mãe e o médico se aproximaram da garota e tentaram fazê-la entender que hospital não é lugar de bicho, que eu poderia estar doente de verdade e que precisaria de um veterinário. Prometeram que me levariam ao veterinário. Mas a menina estava decidida a não me dizer adeus naquele momento.

— Tio-que-ouve-o-coração, lembra que você disse que eu ia dormir bastantão hoje à noite? E mamãe, lembra que você disse que eu podia pedir o que quisesse até o fim do dia? Eu quero o miau.

O médico respirou fundo, e a mãe abraçou a menina para chorar um pouquinho. Todo mundo meio que lacrimejou e entraram no acordo de que o pedido da menina tinha que ser realizado, independente das proibições do hospital. Eu estava com medo dos rottweilers que me esperavam do lado de fora, então, aceitei ficar.

Quando todo mundo saiu, a menina foi para perto da janela, pediu para que eu subisse na cama também, fungou o nariz e me disse:

— Tá vendo aquela estrela? A segunda à direita? Eu disse pra ela que queria um miau, e ela me respondeu, assim, com brilho de estrela, que tava tudo bem. Daí você apareceu.

A menina olhava para a janela como se as estrelas e a Lua fizessem parte de uma família, e isso ficou esclarecido quando ela me contou:

— Sabia que é lá que vou morar quando acordar, depois de dormir bastantão? Foi o tio-que-ouve-o-coração que disse.

— Mas por que é que você vai “dormir bastantão”?

— Eu não sei muito bem... — tosse, tosse, tosse — Mas ouvi quando ele disse pra tia-que-dá-remédio alguma coisa sobre pneu. Ele é bobinho e acha que sou um vrum-vrum.

O sono abriu a boca de Glorinha, que se deitou. Eu também já estava meio cansado de tanto ter corrido, que me encostei ao lado dela. Ela foi fechando os olhos bem devagarinho e começou a ficar com frio. Arrastei o cobertor com a boca para cobri-la, mas parecia que ela já estava dormindo e que era o sono de “dormir bastantão”, que ela falava.

Para não atrapalhar, resolvi ir embora. Vi que a segunda estrela à direita brilhava ainda mais e caminhei tranquilamente, olhando para o céu. Só percebi que estava totalmente distraído quando me esbarrei em patas que não eram minhas. Os dentes afiados do rottweiller sorriram para mim, e isso resultou em um desmaio de gato.

***

Não há nada mais incômodo do que quando estamos dormindo e ficam cochichando na nossa orelha. Eu fazia um esforço felino para abrir os olhos, enquanto ouvia um zum-zum-zum do tipo: “Olha que diferente!”, “Será que anda?”, “Será que voa?”, “Será que morde?” Quando consegui levantar as pálpebras, um punhado de estrelas se assustou, gritou e saiu aos trotes. Uma delas ainda deu voz de comando:

— Corram, antes que ele nos machuque!

— Não vou machucá-las! — eu disse. — Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

— Um gato? Já ouvi falar em gatos, mas sempre achei que não passasse de contos de fadas — uma estrela comprida disse.

Senti que eu não estava no meu estágio normal; era confusão demais para uma mente de gato desvencilhar. Primeiro, eu estava fugindo dos cachorros; depois, fui brevemente adotado por uma garotinha doente; daí, voltei para a rua e encontrei novamente os cachorros; então, do nada, acordei na Lua, cercado de estrelas que não sabiam o que era um gato.

— Vocês nunca viram um gato antes?

— Não! Não é muito normal aparecer bicho por aqui. O último que vimos foi uma cadela chamada Laika, mas já faz muito tempo.

Alguém já havia comentado dessa tal de Laika comigo, que ela era conhecida por ser o primeiro ser vivo a entrar em uma astronave e ir ao espaço. Mas, como ela era uma cachorra, não quis nem saber muito da história. Queria mesmo era entender o que eu estava fazendo no céu e por que as estrelas estavam tão agitadas.

— Alguma de vocês sabe como vim parar aqui?

— Meu nome é Janaína — uma delas disse.

De repente, todas as outras começaram a se apresentar — Raul! Geórgia! Afonso! Ernestina! Claudete! — e, assim, mudaram de assunto. Com tanto nome vagando na minha cabeça, não aguentei e dei um miado bem esculachado. Todas se calaram, e eu repeti a pergunta.

— Como é que vim parar aqui?

— Quando as pessoas terminam a vida delas na Terra, elas sobem aqui no céu, onde se transformam em estrelas — uma estrela chamada Diana disse. — Agora, o que um gato faz aqui é mistério até para nós. Talvez seja porque você tem alma de humano.

Senti o calorzinho de um cometa que passou ali perto e fiquei pensando se algum deles viria até a Terra para me trazer de volta. Mas não havia rodoviária, e isso me fez concluir que eu teria que passar mais um tempo lá.

— E a Glorinha? — eu disse. — Ela está bem?

— A menina que veio um pouco antes de você? Ela está bem ali.

A estrela apontou para um pedaço da Lua, onde a menina dançava e pulava amarelinha. Quis me aproximar, e ela logo me viu.

— Miau, viu só que bacana? Aquele pneu que o tio-que-ouve-o-coração disse que eu tinha... devia ser pneu de foguete.

Ela começou a dançar, sem tosse nem nariz escorrendo. Fiquei feliz por vê-la curada e, assim que ela saiu rodopiando, perguntei à Janaína (ou talvez fosse Amélia, ou Gislaine, ou Alessandra) por que Glorinha ainda não havia se tornado uma estrela.

— Ela precisa fazer alguma coisa muito boa para virar estrela.

— E como ela fará isso?

— É só ela desejar. O espaço cósmico, que vai desde a segunda estrela à direita e depois sempre em frente até de manhã, é mágico. É só ela desejar, que tudo se realiza.

Fui contar a novidade para a menina, enquanto ela provava um pedaço da Lua, para saber se realmente era de queijo. Ela me respondeu que já virava estrela e me mostrou, dando uma cambalhota. De repente, apareceu uma estrela grande e brilhantíssima, que iluminou os cabelos escuros de Glorinha.

— Glória, jovem menina, seja bem-vinda! Sou a Estrela-Guia, mãe de todas as estrelas e filha do Sol.

— Você também é mãe da estrela-do-mar?

— Apenas das do céu, querida. E você, em breve, será uma de nós. Mas, para isso, precisa fazer uma coisa boa. Basta dizer o que quer e, se as forças cósmicas considerarem uma boa feita, você será transformada.

A menina gostou da ideia e disse que queria brincar. Explicaram que não era uma brincadeira, mas tudo para ela se resumia em diversão.

— Bem, vejamos... Todo mundo aqui poderia falar rimado! Seria uma coisa boa, todos falando que nem música, não seria?

A Estrela-Guia deu uma rodopiada, piscou três vezes e consentiu. Quando uma das estrelas foi perguntar se havia dado certo, a fala saiu em versos:

“Eu, que ouvi o pedido bem de perto
Fiquei na dúvida para saber se deu certo.”

Nisso, outra estrela respondeu:

“Deu mesmo. Que gozado!
Tá todo mundo falando rimado.”

Mas a Estrela-Guia lamentou:

“Infelizmente, esse seu desejo não foi suficiente.
Você não virou estrela e continua sendo gente.”

A menina pensou, pensou e decidiu tentar outra vez:

“Mas eu não me darei por vencida!
Quero que todas as estrelas fiquem coloridas.”

A Estrela-Guia deu uma rodopiada, piscou três vezes e consentiu. O céu ficou parecendo um manto de confetes, com cada estrela de uma cor: estrela bege, estrela verde, estrela vermelha e até estrela cor-de-laranja com bolinhas azuis! Mas a Glorinha continuava menina. A Estrela-Guia repetiu o desabafo:

“Esse seu desejo também não foi suficiente.
Você não virou estrela e continua sendo gente.”

Glorinha não desistiu e tentou de novo. Dessa vez, deixou que os sentimentos falassem por si:

“Neste céu, a gente brinca e a gente dança,
E o miau está aqui, mas tem muito bom coração.
Quero que ele faça bem a mais uma criança;
Por isso, merece voltar, para balançar o rabão.”

A Estrela-Guia deu uma rodopiada, piscou três vezes e consentiu. Chegou para mim e disse:

“Pule no próximo meteorito que passar.
Ele vai cair no seu planeta, em algum lugar.”

Rocei a cabeça nas pernas de Glorinha e recebi um cafuné da garota, em sinal de despedida. Miei para as demais estrelas, que balançaram a ponta direita, para dar tchau. Saltei no meteorito e fiz uma viagem de volta para o lugar de onde vim. Quando aterrissei e olhei para o céu, a segunda estrela à direita da Lua havia recebido uma amiga, pequenininha, cor-de-rosa bem claro, mas muito iluminada.

“Miau, Glorinha!
Descanse em paz, menininha.”

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