sábado, 4 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Cabeça de papel e coração de lantejoulas



Todo mundo tem um primeiro namorado.
Só a bailarina que não tem.
CHICO BUARQUE, Ciranda da Bailarina.

Os cachorros são animais tão idiotas que, quando veem um carro passar, tratam de correr atrás. Uma vez, cheguei a perguntar para um vira-lata manso qual é o motivo de eles fazerem isso. Ele me respondeu que é o mesmo motivo pelo qual eu me sinto atraído por novelos de lãs e pelo qual a boca das crianças se enche de água quando elas olham para um pedaço de bolo. É um impulso sem explicação.

Mas já reparei que há um carro que eles nunca seguem: o caminhão de gás. Como um gato de rua que já presenciou as histórias mais imprevisíveis, entendo que esse silêncio é uma amostra do respeito que eles têm. Não respeito pelo motorista, nem pela empresa de gás, mas pela musiquinha que é tocada.

Ouvi o tananam pela primeira vez muito antes de os vendedores de gás a utilizarem em seus caminhões. Faz bastante tempo, da época em que eu ainda era filhote e estava me acostumando a enxergar com um olho só. Essa música foi usada no samba-enredo de um Carnaval do qual eu jamais me esquecerei.

Falavam tanto dessa festa noturna cheia de gingado e tamborins, que resolvi participar da folia. Cheguei com antecedência e fiquei no pátio externo do sambódromo. Como eu era apenas um gato, não tinham por que me impedir de ficar naquele espaço; assim, pude conhecer os acessórios carnavalescos antes mesmo de os portões se abrirem.

As alas de todas as escolas de samba ficavam naquele espaço, que diziam ser a concentração. Era arlequim para um lado; colombina para outro e um pierrô interferindo no romance. No meio de tudo, ficavam os carros alegóricos. Imaginei como seria um engarrafamento na marginal com carros enfeitados como aqueles.

Deixei os pensamentos bobos de lado e vi que, no espaço destinado à escola de samba que homenagearia as artes, havia um carro-bailarina. Certamente era o mais bonito dentre todos e o que mais chamava atenção: era quadrado, como uma caixinha de música e, dentro, uma bailarina girava, com uma perna levantada e equilibrando-se na ponta do outro pé.

Cheguei perto para conferir os detalhes e notei que, na caixa, estava escrito “Elisa”. Confirmei que esse era o nome dela quando o carro-pintor e o carro-escritor passaram ao lado e desejaram um bom desfile a ela. (Não, não imaginei o que eles queriam dizer; escutei o que foi conversado! Carro alegórico também fala, mas há tanto barulho em dia de carnaval, que ninguém ouve a voz dos coitados — apenas os gatos, que têm a audição sensível.)

— Quebre a perna! — um deles disse.

— Mas tadinha! Sem a perna, ela não desfila — o outro disse.

— Calma, seu bobo, é só um jeito de desejar boa sorte, antes da apresentação.

Evitei uma risada felina e saltei para ver os outros carros. Havia um carro-onça, na escola de samba que homenagearia os animais; um carro-sereia, na do folclore; e um carro-banana, na das frutas. Mas o que me chamou muito a atenção foi o carro-soldado, que pertencia à ala do exército, em homenagem às forças armadas brasileiras.

O carro-soldado tinha a cabeça feita de papelão, e o corpo era coberto com mantas de chumbo, mas não tinha um nome tão estiloso gravado no peito: era João, simples assim. Não era vestido com o uniforme verde tradicional, mas tinha várias cores em sua roupagem. O colorido lhe dava um ar de beleza e felicidade. Por parecer um arco-íris, alguns se arriscavam a chamá-lo João do Arco.

— Do Arco, esteja apresentável para nosso desfile!

— Às suas ordens, carro-capitão!

Enquanto colocavam as últimas lantejoulas nos botões de sua calça, João esquivou o olhar e avistou, lá longe, o rosto de Elisa. Não conseguiu ver mais do que a região que vai do coque do cabelo ao colarinho do vestido, mas soube que aquele era o carro mais alegórico que já havia visto.

— Os pneuzinhos dela são um charme, não são? — o carro-marinheiro disse.

João preferiu ficar quieto; as bochechas ficaram cor-de-rosa e nem foi preciso salpicar purpurina; o motor bateu mais forte e provocou uma explosão interna de confetes. Elisa havia conquistado nota 10 em todos os quesitos, segundo os sentimentos do soldadinho.

A alguns metros dali, na escola de samba que homenagearia a magia, o carro-feiticeiro assistia à cena de timidez de João e percebeu o olhar apaixonado. Veio em tão alta velocidade que quase me atropelou. Colou no carro-soldado e foi bem direto nas palavras:

— Nem se atreva, Do Arco! Ela já é comprometida. Há tempos, buzinamos um para o outro.

— Mas eu...

— Quebre a perna!

Numa arrancada violenta, o carro-feiticeiro bateu no carro-soldado e arrancou, com toda força, uma das pernas de João. No chão, ficaram apenas os destroços de chumbo, lantejoulas e todos os outros acessórios necessários para confeccionar um objeto carnavalesco.

O susto foi grande em quem viu a cena: os queixos de alguns se descolaram, os cabelos de outros caíram e meu único olho ficou arregalado ao máximo. A vilania do carro-feiticeiro fez com que o soldadinho derramasse uma lágrima de cola e decidisse que não iria mais desfilar.

Tristeza e carnaval não combinam, e o destino sabe disso. Enquanto João se lamentava cabisbaixo, Elisa passou ao lado dele, girando e tocando o tananam de música clássica. João levantou a cabeça a tempo de vê-la se posicionar numa vaga da frente e sorriu.

— Vejam! Ela só tem uma perna e ainda assim vai desfilar.

Ninguém se atreveu a contar a ele que a outra perna da bailarina estava levantada e não podia ser vista. Preferiram manter o alto-astral do soldadinho. Ele se animou tanto que foi até ela e estacionou ao lado, não tão perto, mas perto o suficiente para que o coração festejasse soltando serpentina.

— Carro-bailarina, eu...

— Carro-soldado, eu...

Eles não precisavam nem se falar, pois se entendiam sem dizer uma única palavra. Cornetas soavam na mente oca de João, e borboletas dançavam balé onde deveria ser o estômago de Elisa. O carro-feiticeiro viu a alegria dos dois, ligou o motor e se enfiou no meio, ralando nas laterais. Quis intimidar o carro-soldado:

— Marche, soldado, cabeça de papel! Se não marchar direito, vai preso pro quartel.

Antes que um dos dois pudesse dizer algo, um alarme tocou: era o sinal de que o desfile começaria e que a escola de samba de Elisa seria a primeira. Corri para a arquibancada e fiquei embaixo de um dos bancos. Mesmo com um olho só, conseguia visualizar o começo do desfile e os carros se preparando para entrar.

Enquanto as alas sobre arte sambavam e expunham a coreografia que haviam preparado para a apresentação, o carro-soldado ficou no portão, admirando cada centímetro que o carro-bailarina avançava. Ele não percebeu o carro-feiticeiro se aproximar e cuspir nele algumas gotas de gasolina, na região das costas.

O clima era de muita algazarra no sambódromo: os pandeiros eram estapeados e gritavam de dor, os tambores eram batucados e reclamavam dos cutucões, e a garganta do intérprete latejava de tanto cantar. De repente, houve um silêncio total. Ouviu-se somente a melodia clássica. A canção de Elisa fez todo mundo parar o que está fazendo e prestar atenção na novidade.

Após alguns minutos de desfile, a escola atravessou a avenida e os carros foram para o pátio que ficava na saída. A próxima escola que entrou foi a da magia, com o carro-feiticeiro, todo pomposo e mal-encarado. Vieram outras escolas em seguida e, por último, quando o dia já estava quase amanhecendo, o carro-soldado entrou em cena.

Como era a última escola, resolvi acompanhá-la, andando por baixo dos bancos, até o portão de chegada. Quando João cruzou a linha final, o farol bateu no que não devia ser iluminado: o carro-bailarina descansava sua beleza ao lado do carro-feiticeiro, que também dormia.

O soldadinho decidiu ir para o outro canto do estacionamento e derramou mais algumas gotas de cola. As pessoas já se preparavam para ir embora, mas eu decidi ficar um pouco mais. Passei entre as grades da cerca e fui falar com o João. Quando me viu, ele se assustou e fez um desabafo.

— Servir de cama para um gato de rua era só o que me faltava! Além de ter tido a perna e o coração arrancados, ainda ficarei cheirando a xixi de gato.

— Calma, amigo! Eu não tenho essa intenção, não. Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

Disse que já sabia o que se passava e, também, que entendia a aflição dele.

— Ela é a colombina, e você é o arlequim. Ambos estão apaixonados um pelo outro. Mas um pierrô doente de ciúmes quer distanciar vocês dois, em nome da autossatisfação.

Ele dormiu com a minha falação, e eu resolvi ir embora. Já estava com as duas patas dianteiras para fora do sambódromo, quando percebi uma luz se acendendo em meio à escuridão. Olhei para trás e vi que o carro-feiticeiro estava acordado. Ele ligou o motor bem baixo e foi em direção ao carro-soldado.

Pensei que fosse apenas meu sono criando algum tipo de miragem, mas meu único olho enxergava muito bem e viu quando o carro-feiticeiro rangeu vingativo e acendeu um palito de fósforo que fazia parte de seu enfeite.

Sem ter sido contagiado pela alegria do carnaval, ele atirou a chama nas costas do soldadinho, onde anteriormente havia jogado gasolina, e ainda sussurrou:

— Quartel pegou fogo. Do Arco se deu mal!

Dei um miado tão desesperador que o carro-bailarina acordou. O carro-feiticeiro estava se aproximando dela, para entrelaçar suas rodas, mas Elisa o rejeitou, com batidas nervosas, a ponto de amassar uma das arestas da lataria quadrada.

O carro-feiticeiro ficou tão irritado que disparou para fora do estacionamento, e o carro-bailarina se aproximou do carro-soldado a tempo de ver as folhas de chumbo se derretendo e o papelão virando cinzas.

Sem ter como controlar o fogo, Elisa começou a tocar sua música clássica, como marca de despedida. No entanto, o gás, que era o combustível que fazia a bailarina girar, acabou se espalhando e provocou uma explosão.

Os holofotes se acenderam, e os seguranças do sambódromo apareceram, mas os carros, àquela altura, já haviam se queimado totalmente. No chão, restou apenas um coração de lantejoulas carbonizadas.

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