sábado, 25 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Vinte mil réguas submarinas



O importante é ser você.
Mesmo que seja estranho, seja você.
PITTY, Máscaras.

Decidi que queria ser um coala, depois de ter assistido a um documentário na televisão a respeito do assunto. Suportaria até injeções e remédios amargos para modificar o DNA, só para me tornar um ursinho acinzentado fofíssimo que dorme o dia todo e só acorda para comer.

Um dos meus companheiros — que fica comigo, todas as noites, em cima do muro, miando para o além — deu risada e disse que era mais fácil eu atravessar o oceano do que realizar esse meu desejo. Pensei pouco a respeito do assunto, mas o suficiente para aceitar o desafio e afirmar:

— Vou me fazer de gaquático e ser o primeiro felino a descobrir o que há do outro lado do mar.

Gatos morrem de medo de água, ainda mais se ela for salgada e cheia de ondas; mas a vontade de fazer o que parecia impossível arranhava dentro de mim. Vasculhei o depósito de lixo de uma loja de produtos para natação e peguei um equipamento de mergulho, tamanho pequeno, que encontrei jogado fora.

Enquanto as ondas vinham a caminho da praia, fui de encontro a elas, usando os pés de gato para abrir espaço. Senti a água fria e a areia molhada e deslizante ao fundo. Tomei a última gota de coragem que ainda tinha e, evitando tomar as gotas do mar, submergi no Atlântico.

Via os crustáceos fazendo buracos na areia e via ostras saindo das conchas. Quanto mais eu andava, mais afundo eu entrava e mais beleza marítima conhecia. “Espero que não tenha tubarão por esses lados”, pensei enquanto me aproximava de uma curiosa ilha submersa: além de estar debaixo da água, ainda tinha, como cerca, estruturas de madeira que se pareciam muito com réguas escolares.

Procurei a entrada e descobri que o portão, na verdade, era um buraco que ficava entre os números 50 e 75. Em outras palavras, eu precisaria escalar meio metro e passar por uma abertura de exatamente 25 centímetros. Usei as unhas resistentes para subir pela cerca e saltar para o outro lado. Quando caí no chão, dei de cara com uma estrela-do-mar.

— Meu nome é Janaína — ela disse.

Levei um susto tão assustador que berrei; mas o miado virou apenas uma bolha de ar, que vazou da máscara de mergulho e flutuou até a superfície. Mais calmo, olhei atenciosamente para a estrela e percebi que a conhecia de algum lugar. Ela, então, explicou:

— Sou uma estrela que caiu do céu para enfeitar o mar.

Certamente, ela havia sido uma das que conheci na viagem que fiz ao céu quando morri de susto. E, por ironia das circunstâncias, quase que morri de novo; só que, agora, aprendi a controlar o terror que sinto.

Fiquei surpreso ao encontrar alguém conhecido ali, no fundo do oceano, e quis começar a conversar. Antes, no entanto, que eu pudesse mandar um miau, uma sardinha apareceu detrás das algas marinhas e quase se esbarrou em mim. Quando percebeu que tipo de animal eu era, saiu gritando para que até Netuno ouvisse. As outras sardinhas saíram de seus corais desesperadamente e provocaram a maior confusão para ver quem conseguia se esconder do devorado de peixes.

— Calma, gente! — disse Janaína. — Ele é apenas um gato caolho do rabo comprido e não faz mal a ninguém...

A galera estava se tranquilizando, até que ela decidiu terminar a apresentação:

— ... a não ser às sardinhas que caça para se alimentar.

Voltou a anarquia: peixe subindo em cima de peixe, barbatana batendo em nadadeira, espinha furando escama. Na tentativa de acalmá-los, tirei o sugador de oxigênio da boca e confessei:

— Não se preocupem! Só como sardinha-de-água-doce. Vocês, salgadas, podem me causar pressão alta.

As sardinhas ainda estavam receosas com minha presença, mas puderam perceber, pela honestidade refletida no meu único olho, que eu estava em missão de paz.

— Ufa! Já estava pensando que era mais uma armadilha da Pólvora — uma delas disse.

Perguntei quem era essa, e elas me contaram que Pólvora era a criatura mais terrível do recife das Vinte Mil Réguas Submarinas. Com os oito tentáculos de polvo, ela era capaz de esmagar qualquer um que considerasse inimigo. Todo mundo a temia.

— E se ela fica assustada — disse uma sardinha — joga uma tinta escura na água e deixa quem estiver por perto totalmente cegueta.

— Um dia — disse Janaína — ela estava tão irritada que comeu uma das minhas pontas. Minha sorte é que estrela-do-mar é capaz de se regenerar, e ganhei um braço novo rapidinho.

De repente, toda a reunião de boas-vindas foi interrompida por mais gritos e correria. Pedi para que não fizessem tanta euforia, pois eu era um gato bonzinho; mas não sobrou uma criatura viva próximo dali; até as algas se encolheram atrás das pedras.

Estava chegando à conclusão de que seres marítimos eram medrosos demais, mas, antes de eu confirmar minha hipótese e continuar a caminhada, senti uma gosma gelada, como se fosse um desentupidor de pia, sobre minhas costas. Quando virei o pescoço, havia uma gigantesca espécie arroxeada de polvo fêmea. Ela enrolou um dos tentáculos em mim e murmurou:

— Nunca tive gatos escravos. Espero que você faça um trabalho melhor do que o daquela sereia inútil que aprisiono no calabouço do meu castelo.

Fui levado para o palácio de Pólvora e largado na mesma cela em que estava a sereia de que ela havia falado. A garota-peixe me viu com olhar piedoso e foi conversar comigo, para saber se eu estava bem. Ela se apresentou a mim como Mariana.

Em três minutos de conversa, descobri que Mariana nunca conheceu os pais. Quando o pai dela soube que a mãe dela estava grávida, entrou em seu disco voador e voltou para o planeta de origem. E a mãe, depois do nascimento da pequena sereia, decidiu explorar o litoral do Cabo da Boa Esperança.

(Na verdade, Mariana não sabia bem o que havia acontecido para que os pais se desligassem da vida dela sem deixar recado após o sinal, por isso preferia acreditar que tinha um pai extraterrestre e uma mãe historiadora.)

Nossa conversa foi interrompida, antes de eu dizer quem era. Pólvora me arrancou da prisão para que eu segurasse a antena da televisão do quarto dela — parecia inacreditável, mas a tecnologia submarina era semelhante à que tínhamos em terra.

Enquanto eu colocava um pedaço de palha de aço na ponta, ouvi o jornalista anunciar: “O filho da rainha lula vai se casar!” E acrescentou que o pretendente seria escolhido de uma maneira inusitada: eles visitariam as casas e entrevistariam as interessadas, até que o filho da lula encontrasse um peito em que seu coração se encaixasse.

Pólvora viu, aí, uma ótima oportunidade de se casar, mas sabia que, com a sereia vivendo sob o mesmo teto, seria difícil o filho da rainha prestar atenção no charme roxo dela. Mariana conseguia ser mais bonita, mais simpática, mais carismática e mais apaixonante do que Pólvora sonhava em ser. Então, a vilã decidiu pensar em uma forma de fazer com que Mariana não fosse notada.

Primeiro, pensou em escondê-la no guarda-roupa; mas o lugar era muito apertado, e ela conseguiria abrir a porta, já que não havia trancas. Depois, pensou em prendê-la dentro de uma caixa de contorcionismo; mas sequer havia uma caixa dessas na casa! Então, Pólvora encontrou a ideia de que precisava: transformaria Mariana em um tritão.

— Claro! Se Mariana for um menino, o filho da lula não poderá se casar com ela.

Assim, começou a pensar em voz alta e citou milhares de possibilidades de como poderia fazer isso. Pensou em cirurgia plástica, em maquiagem artística e até em comprar um forno capaz de modificar a aparência das pessoas. Mas tudo era muito caro e complicado, ainda mais para quem estava no fundo do mar. Resolveu que a transformação deveria ser feita passo a passo.

Num momento em que Mariana estava distraída, Pólvora deu início ao plano, despejando um pote inteiro de creme para nascer barba no rosto dela — era um creme potente, feito com couro de peixe-boi, que deixaria as bochechas dela com pelos e faria um bigodão esculachado crescer debaixo do nariz. Mariana tentou se lavar, mas o creme já havia surtido efeito.

Depois, Pólvora preparou um refrigerante especial: misturou um pouco de pó de pérola com água e inseriu um pouco de gás. Mas não era um gás qualquer de refrigerante; era gás hexafluoreto, que faz a voz engrossar. Deu para que Mariana tomasse um gole, e ela virou logo o copo — quando foi falar, a voz saiu como de cantor de ópera.

Na mesma tarde, Pólvora trocou todas as roupas do guarda-roupa de Mariana: tirou os vestidos, os laços e até os sutiãs. No lugar, colocou roupas de tritão. Como se não bastasse, deu um jeito de sujar as roupas que Mariana estava usando, para que, quando a sereia fosse se trocar, tivesse a obrigação de escolher um dos ternos e cartola.

Então, chegou a vez do quarto e último passo, o mais difícil. Pólvora precisaria de um feitiço para permitir que Mariana fizesse xixi de pé. Bastava isso, e se tornaria um tritão perfeito. A vilã retirou um livro velho e medonho de um fundo falso da gaveta de talheres. Era um livro de poções e encantamentos. Na página sobre transformações, ela leu:

“Para que o corpo físico seja transformado, é necessário juntar, numa mesma poção: três gotas de lágrima de golfinho, nove patas de siri torradas e um bigode de gato.”

Os golfinhos, ela arrumaria na costa leste; os siris viviam passando em frente do jardim do palácio; mas o gato... Enquanto ela imaginava onde arrumaria um gato insignificante para arrancar-lhe um bigode, solucei inocentemente e fui descoberto.

Com a poção preparada, Pólvora entrou sorrateiramente no banheiro, onde Mariana tentava dar um jeito de arrancar a barba do rosto. A madama polvo sussurrou para si:

— Preciso dar um jeito de jogar isso na cauda dela rápido, antes que as maldades iniciais percam o efeito.

Antes de conseguir se aproximar de Mariana, entretanto, um barulho de vidro se quebrando assustou Pólvora e fez com que ela derrubasse a poção na privada. Correndo até a sala, ela encontrou Janaína espatifada no chão, mas com uma capa de super-heroína e uma expressão corajosa na face:

— Esta é a hora da estrela... Janaína Star ao resgate! — disse. — Vim salvar meu amigo Miau.

Pólvora havia ficado irritadíssima e pareceu que iria esmagar Janaína com uma tentaculada só, de forma que a pobrezinha nem conseguiria se regenerar depois. Mas um mutirão de sardinhas entrando pela vidraça quebrada a distraiu.

— Resolvemos que não vamos mais ficar caladas — uma delas disse.

— É isso aí! Viemos libertar a Mariana.

A essa altura, Mariana já havia conseguido se barbear; havia encontrado a roupa dela, que estava escondida debaixo da cama; e o gás hexafluoreto já havia perdido o efeito. A sereia já estava normal novamente. Isso fez que com Pólvora desabasse em lágrimas de nanquim.

— Não é justo! Essa garota é tão linda, e eu... eu sou um monstro. Todos a amam, todos a querem como amiga. Mas eu sou a abominação dos mares, e a única chance que eu tinha de me livrar dessa peste e me casar com alguém... essa chance foi perdida.

Enquanto Pólvora desabafava, a campainha tocou. Mariana abriu a porta e recebeu a rainha lula e o filho. No mesmo momento, o rapaz lula exclamou:

— Que moça mais linda!

Mais nanquim foi liberado por Pólvora, o que fazia com que o ambiente ficasse ainda mais opaco, difícil de enxergar.

— Viu? Todos os olhares são voltados para Mariana — a madama polvo disse.

— Mas estou falando de você, roxinha — disse o filho da lula. — Para que vou querer uma sereia, que é metade peixe e metade humana, se posso entrelaçar meus tentáculos nos seus, hein?

Pólvora, que sempre teve inveja da sereia, foi apresentada à beleza própria. Explodiu de tanto contentamento, que jorrou altas doses de nanquim no mar. Ninguém conseguiu ver mais nada. Quando a escuridão passou, a madama polvo e o filho da lula já não estavam mais ali; provavelmente, haviam se mudado para um lugar onde vinte mil réguas não seriam capazes de mensurar o tamanho do amor que sentiam um pelo outro.

Depois disso, dei adeus a toda a peixarada, em especial à Janaína. E voltei para a praia, onde a primeira criatura que encontrei, coincidentemente, foi meu companheiro das serestas.

— Ué, você não disse que queria ser coala?!

— Decidi que quero ser apenas um gato caolho do rabo comprido. Se eu não for isso sempre, não quero ser mais ninguém.

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