sábado, 29 de outubro de 2011

América Latina



— Ó, painho! A burra tá puxando a carroça de feno.

“Não sou uma burra!” — revoltou-se em pensamento. — “Sou uma mula. M-U-L-A. Mula! E me chamo Fidumaégua.”

Para uma mula alagoana, cargueira e de crina eriçada, Fidumaégua pensava demais. Pensou até que a carroça estava muito pesada para ser puxada e, por isso, comeu um pouco do feno. Além de aliviar o peso, lhe daria mais energia para continuar com seu serviço.

O pouco do feno foi bem aceito pelo estômago, mas o intestino não foi tão receptivo. A barriga roncou esquisito e a mula começou a mancar.

“Valha-me Nossa Senhora, que, se mula suasse, já estaria em sopa.”

Fidumaégua tentou segurar até encontrar um banheiro, mas não havia nenhum por perto que fosse destinado a animais. Tentou segurar mais um pouco, só que a barriga se contorcia por dentro e não teve como evitar: precisou levantar o rabo ali mesmo, no meio da rua.

— Ó, painho! A burra tá fazendo burrice.

O painho olhou feio; o menino já estava. As pessoas que passavam por perto torciam o nariz por causa do cheiro. Diferente dos mosquitos, que se aproximavam para voar bem pertinho da burrice.

“Oxente que vão me transformar numa mula-sem-cabeça por conta desse acaso.”

A mula baixou a crina e foi para casa com a certeza de que chicote do painho lhe faria um aconchego indesejado no lombo. Entretanto, como a dor da humilhação que sentiu recebendo as torcidas de nariz por causa da torcida na barriga foi a mais doída, Fidumaégua fugiu.

Passou dias trotando a passos de mula e, como não tinha uma bússola, não sabia que estava indo ao oeste. Passou por um lago de piranhas vegetarianas, visitou um cemitério de urubus e fez amizade com uma árvore chamada Cássia dos Anjos e que era a mais velha da Floresta Amazônica. No desgaste de sua ferradura, leu numa placa que estava na Praça de Bogotá.

Levou um bruto susto quando percebeu que andou tanto que chegou à Colômbia. Mais três animais — um sapo, um cachorro e um leopardo-fêmea — chegavam, paravam, liam a mesma placa e se assustavam. Fidumaégua tentou fazer amizade, começando pelo sapo.

— Ei, Perereca Louca!

— Quem? Eu? Desculpe, mas sou um sapo surinamês de duas tonalidades, de pele cor de berinjela coberta por traços fluorescentes de cor púrpuro-azulada.

— Agora você provou pra mim que é uma Perereca Louca.

O cachorro, mesmo sem ser chamado, entrou na conversa e se apresentou afobado:

— Eu sou Simpelo, um cão pelado peruano!

— Pelo visto, acabou de nascer, não é mesmo, Carequinha?

— Não, já tenho seis anos... Como disse, sou um cão pelado peruano.
Fidumaégua já estava estática, então apenas continuou assim e, para não parecer esquisita, relinchou para o leopardo-fêmea.

— E você, Gata?

— Não mio para estranhos.

— Nem precisa falar mais nada. Tá ameaçada de extinção! Só pode...
Estava certa: a Gata era um leopardo raro, da espécie Leopardus guigna, mais conhecida como gato chileno, o menor felino selvagem americano.

— Bem, já que ninguém perguntou, vou me apresentar por conta própria: sou uma mula brasileira chamada Fidumaégua. Assim como vocês, não sou da Colômbia, mas vim parar aqui depois de ter fugido de casa. E vocês, como chegaram aqui?

— Minhas particularidades não são de seu interesse — o sapo disse.

— Não mio para estranhos — a Gata redisse.

— Eu soltei um pum! — Simpelo contou.
Foi um estouro. Todo mundo quis saber que história era aquela e ele, cheio de gás, fez questão de contar.

— Como vocês podem ver, não tenho pelos, então sinto muito frio. E, como vocês sabem, o frio causa prisão de ventre. Num dia de inverno, estava tremendo para tentar me esquentar e isso forçou a saída dos gases. De repente, pum!

Dessa forma, Carequinha, ou melhor, Simpelo foi desprezado pelos donos e pelos amigos da fazenda. Então, numa geada da manhã, fugiu ao norte, soltando puns, sem destino certo, até cruzar a fronteira entre o Peru e Colômbia.

— Querem saber, comigo não foi tão diferente — o sapo revelava. — Eu era um sapo de riacho até que um dia um pescador me encontrou, se encantou pela berinjeleza da minha pele e me levou com ele, colocando-me em um aquário. Lá tinha pedregulhos e areia, castelinhos artificiais e oxigenação, mas não tinha banheiro. E uma hora precisei fazer xixi.

Assim, a Perereca Louca, ou melhor, o sapo surinamês foi jogado no quintal, junto da água amarelada do aquário. Envergonhado e com o moral ferido, saltitou para o sul, saindo do Suriname e indo parar na Colômbia.

— Eu não mio para estranhos... — a Gata dizia. — Não mio porque, da última vez que fiz isso, vomitei uma bola de pelos. Eu era um leopardo de família, vivendo em um centro de preservação de meio ambiente, no qual também não havia banheiros para animais. Quando senti vontade de vomitar, não tive para onde correr e a bola de pelos saiu ali mesmo, na frente de todos.

Ninguém mais parava para admirar a beleza da gata chilena e ainda controlavam sua alimentação para que ela não vomitasse novamente. Incomodada com o acontecimento, a Gata usou sua agilidade e foi aos pulinhos e elegância inflamada do Chile à Colômbia.

A mula Fidumaégua também contou sua traumatizante história e, então, destinou-os uma missão.

— Gente, que coisa mais porreta! Nada acontece por acaso, então, se nos encontramos aqui, na Praça de Bogotá, com histórias semelhantes, deveríamos impedir que outros animais também se sintam constrangidos e lutar pelo mesmo objetivo: a instalação de latrinas para animais!

— Latrina? — surpreenderam-se. — O que é isso?

— É a forma como gente chique feito eu chama o banheiro.

Combinaram um esquema e deram início à campanha América Latrina: uma luta por banheiros públicos para animais. Eles tinham a intenção de comover os habitantes de Bogotá, depois do resto da Colômbia, depois da América inteira e, no fim de tudo, o mundo todo estaria unido pelo respeito à privacidade na hora das necessidades fisiológicas dos animais.

Começaram com o cartaz: Fidumaégua arrastou uma placa de madeira; o sapo surinamês pulou sobre ela, espalhando suas cores e formando desenhos; a Gata saltou sobre o muro mais alto com a placa na boca e o cachorro nas costas; e Simpelo tremeu em cima do muro, chacoalhando a placa para chamar atenção.

Uma pena que todo trabalho foi em vão. As pessoas não entendiam aquela placa e algumas mais ousadas ameaçavam a ligar para o abrigo de animais — “onde já se viu quatro animais soltos pela praça?”

Então tiveram a ideia de falar com alguma criança, já que elas são mais amáveis com os animais. Avistaram a menina perfeita, que parecia supercarinhosa. Só que havia um problema:

— Nós só falamos a língua dos animais... Alguém sabe falar algo em espanhol?

Rebolando o lombo, Fidumaégua deu um passo à frente.

— Você? Mas você é brasileira... Tem certeza que fala espanhol?

— Além de saber falar espanhol, ainda falo com sotaque nordestino! — então Fidumaégua se aproximou da menina. — Ió! Ió!

A menina saiu de perto e, quando foram questionar a mula, a justificativa foi:

— É que ainda só aprendi as vogais.

Já estavam, os quatro, desanimados, achando que sua ideia não daria certo, até que viram um menino. Era jovem, estava com roupa de garoto perdido e, em pé, de frente para um muro, fazia xixi.

— Vejam, galera! — a mula relinchou. — Ele não tem latrina em casa.

Concordaram que ele era o garoto certo para ajudar na campanha, porém não sabiam como chamá-lo para ajudá-los. Então, começaram a discutir:

— Arraste-o para cá, Fidumaégua!

— Pule na cabeça dele, Perereca Louca!

— Solte um pum e chame a atenção dele, Simpelo!

A barulheira da discussão era tanta que o menino escutou. Chegou perto e ficou curioso:

— Nunca vi bicho falar.

Os quatro ficaram em silêncio. Aparentemente, o menino conseguia se comunicar com os animais. 

— Todo bicho fala — explicaram. — E você deve ter o poder de falar com a gente.

— Mas eu nunca falei com nenhum bicho daqui antes.

— É que você deve ter o poder de falar apenas com animais estrangeiros, então seu dom é internacional!

O menino ficou abismado. Os animais ficaram abismados. Um padre que passava na rua e viu o garoto estranho que falava com os bichos também ficou abismado.

E o garoto começou a divulgar a campanha dos animais. Contava para todo mundo que passava pela praça e pedia que ajudasse.

As pessoas pensavam: “Que imaginação fértil tem esse carinha!” e, em homenagem a toda sua criatividade, foram colocadas caixinhas de areia nas ruas, foram plantadas moitas nos canteiros e foram distribuídos saquinhos para que os donos coletassem o cocô dos bichos. Os animais poderiam fazer suas necessidades, tranquilamente, sem serem humilhados.

A partir de então, as pessoas passaram a fazer xixi nas piscinas e em postes à beira da estrada.

— Elas também deveriam promover uma campanha América Latrina, não é mesmo, Fidumaégua?

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